A bronca de Nadav Lapid com seu país continua galopante, raivosa e violenta, pelo menos é o que se percebe a partir desse Ahed’s Knee que poderia ser uma continuação conceitual do seu petardo anterior, Sinônimos. O diretor israelense, depois de discutir as possibilidades de mudança identitária e o que isso acarreta em muitas maneiras, retorna à paisagem do seu país para contar uma história de fúria e embate de forças, esse que se dá num plano simbólico e tem a censura aos artistas da terra como ponto de confronto entre o cineasta Y (Avshalom Pollak) e o próprio Estado de Israel.
Este, por sua vez, está encarnado na personagem de Yahalom (Nur Fibak), uma jovem que ocupa atualmente o cargo de diretora de uma biblioteca que fica no meio do deserto, próxima a um vilarejo afastado no país. Ela acolhe e recebe muito bem o cineasta que está ali para apresentar seu último filme como parte de uma atividade cultural daquele espaço. Mas, como boa funcionária do Ministério da Cultura de Israel, ela precisa fazer cumprir as normas do lugar e Y, por exemplo, tem de assinar um documento em que ele revela os temas do seu filme, que não podem nunca ser algo que “fira” ou “manche” a imagem do país.
O filme lança de pronto a discussão sobre como Israel tenta controlar os discursos dos artistas e de como Y está já em estado de sufocamento com esse tipo de restrição – e muitas outras que o perseguem na sua jornada como cineasta. A mira do filme recai sobre como as instituições israelenses promovem o cerceamento das ideias e opiniões, prato cheio para que o filme amplie o debate sobre todo o tipo de opressão e violência cometida pelo Estado de Israel, não só no campo cultural, mas também social e na própria sobrepotência militar do país.
Ora, Y está preparando um novo trabalho que se chama “O Joelho de Ahed Tamimi”; ideias, concepções e até mesmo teste de elenco são mostrados já nas cenas iniciais do longa de Lapid. Acontece que esse filme imaginário ainda em construção seria baseado na história real da jovem ativista Ahed Tamimi, uma garota palestina que, em 2017, durante um protesto, foi acusada e presa por ter enfrentado e dado alguns tapas em soldados israelenses que ocupavam a região onde fica a casa de sua família na Cisjordânia. Enquanto estava presa, alguém da alta cúpula do governo israelense chegou a tuitar que Tamimi merecia ter recebido uma bala no joelho porque assim ela ficaria em prisão domiciliar para o resto da vida. Ou seja, toda a brutalidade e intransigência do governo israelense e sua política racista, de extermínio e de sobreposição aos palestinos e árabes em geral está no cerne do filme, na sua anunciação primeira (o título do longa e do outro filme dentro do filme).
Nadav Lapid escolhe, portanto, o confronto direto, sem papas na língua, muito embora a narrativa esteja mergulhada em vertigem e siga um ritmo acelerado, muitas vezes alucinado, tanto na maneira como as falas são jorradas pelos personagens em alguns momentos, misturando muitos anseios e percepções de cada um, principalmente de Y, mas também no modo inquietante como a câmera se comporta – chacoalhando, virando repentinamente e fazendo movimentos bruscos. Tudo isso perfaz um retrato interior muito angustiante desse personagem que parece ter introjetado muitas de suas preocupações e agora precisa colocá-las para fora. O filme ganha algo de vigoroso com essa escolha e também ensaia uma ebulição que só poderá terminar em catarse e fúria.
Ahed’s Knee é um filme de energia, como também o era o Sinônimos, forma que aproxima os dois longas, para além deste novo ampliar as discussões sobre pertencimento nacional – afinal, a pergunta feita no filme anterior permanece: o que significa ser israelense? Como posso me identificar com esse país que me deu raízes culturais, e ao mesmo tempo rechaçá-lo e odiá-lo pelo que ele é e pelo que faz com os demais ao seu entorno? O próprio Y, num momento de explosão, fala de um “vínculo indesejado” com Israel. A grande diferença, talvez, é que o filme novo é muito mais direto e facilmente codificado em termos temáticos sobre aquilo que Lapid quer expressar, gritar no deserto suas angústias e soltar seus demônios. É incrível como aqui o cineasta tem menos recursos de cena – grande parte do filme se passa no deserto, na biblioteca ou na casa onde ele fica hospedado, e a verborragia é a maneira como esse personagem consegue ampliar sua voz –, mas mesmo assim o filme nunca deixa de ser potente e catalisador de um debate que vai se afunilando e ganhando contornos cruéis.
Este é, portanto, um filme de violência e raiva em que Lapid não poupa ninguém, nem mesmo o seu protagonista, não por acaso também cineasta. Só que um cheio de manias e introspectivo, com rompantes de irritação, grosseiro e ríspido, egóico e afrontoso; mas também cheio de conflitos pessoais, artísticos, identitários. É ele quem provoca um grande mau estar naquele ambiente, imbuído de uma sana denuncista e fazendo uso de métodos pouco éticos para tal, o que não pode terminar nada bem (já desde antes, com toda essa ira catalisada, o filme já prenunciava um abalo emocional que não poderia ser contido). Quando a panela de pressão explode, ninguém parece se salvar. Definitivamente, Nadav Lapid é a bala no joelho do Estado de Israel.
Ahed’s Knee (Ha’berech, Israel/França/Alemanha, 2021)
Direção: Nadav Lapid
Roteiro: Nadav Lapid e Haim Lapid