Jia Zhang-ke, o cineasta que tem radiografado as mudanças na paisagem geográfica chinesa e de como isso afeta as pessoas, começa a construir em seu novo filme uma inusitada trama sobre uma organização criminosa, o que seria uma curiosa mudança de rota na sua filmografia – como já havia feito anteriormente em Um Toque de Pecado. Porém, ele quer mesmo é chegar ao melodrama. Tais desvios não passam de rápidas impressões porque mesmo nesses filmes a pretensão de Jia em investigar as mudanças sociais da China atual vão continuar latentes.
Em Amor Até as Cinzas, o diretor vai chegar a este ponto a partir da trajetória de Qiao (Zhao Tao) e Bin (Fan Liao), o casal que comanda a Irmandade, pequeno grupo mafioso que domina os negócios de jogos clandestinos numa região no interior chinês. Na verdade, Bin é o líder e tem a amada não só como braço direito, mas ela demonstra ocupar também o mesmo nível de hierarquia de voz de comando sobre os homens que estão às ordens de Bin.
Vale destacar que o filme rompe com alguns lugares comuns das tramas mafiosas, ainda que em pequenas doses. Estamos longe da representação da máfia como instituição glamourosa, organizada e tentacular – trata-se mesmo de uma corporação menor, sem grandes pretensões. Também o lugar da liderança não é o do chefe mal encarado, brutalizado e desumano que grita ordens para seus capangas. Qiao e Bin fazem planos para o futuro, estão cientes da instabilidade de vida que aquela posição lhes confere, amam-se como companheiros.
No entanto, ao invés de levar adiante todo um clima de disputas e brigas internas que irão abalar aquele microcosmo de negócios escusos, algo tão comum e repetido nos filmes de máfia, Amor Até as Cinzas está mais interessado naquilo que permanece pulsante enquanto proposta de vida a dois. O filme logo vai abandonar os predicados do gênero para abraçar a trajetória torta dos seus personagens – e não pretendo me alongar muito sobre essa tomada de novos rumos para não entregar muita coisa da trama. Basta dizer que casualidades trágicas irão separar os dois amantes e algo muda na atmosfera do filme, que passa a registrar um processo de busca (ou vários deles), centrado na figura de Qiao.
A partir desse ponto, Jia trafega por um terreno por onde ele já passou antes: em certo momento, a protagonista vai chegar a uma pequena cidade do interior que está sendo desapropriada para a construção da barragem das Três Gargantas, o exato mesmo lugar que ambientou um de seus maiores filmes, Em Busca da Vida. Curiosamente, Zhao Tao – esposa do diretor e musa de grande parte dos seus filmes – vivia naquele filme uma mulher que retornava àquele local em busca de vestígios do passado, o mesmo pressuposto que leva Qiao a aportar na cidade em desconstrução para reconstruir sua vida (suas memórias?) em busca do passado.
O filme também atravessa o tempo, começando com aquele resgate oitentista que tomou a China a partir da abertura política no início dos anos 2000 – há todo um flerte com o kitsch e a disco music no início do filme –, passa pelas rápidas mudanças de paisagem e pelo surto capitalista até alcançar a China contemporânea altamente industrializada e tecnológica, também ela fria e cercada de melancolia, registro esse que é muito explicado pelo estado emocional da protagonista.
Tudo isso já foi trabalhado por Jia em filmes anteriores, desde As Montanhas se Separam, ecoando até mesmo o já longínquo Plataforma com seu retrato da modernização do país, o que faz de Amor Até as Cinzas um quase resumo de seu cinema a reforçar os temas e questões que lhe são caros. Mas não deixa de transparecer também um certo déjà vu, para além da agradabilidade de revisitar tais lugares e propósitos. Com isso, a terça parte final perde um pouco do ritmo e do frescor de revisita que havia no restante do filme e carece de um punch, de um momento mais forte que pudesse reverberar a nostalgia daquela mulher que lutou tanto para reconquistar seu posto, sua liberdade, seu amor. As montanhas se juntam, ainda que algo tenha se perdido pelo caminho.
Amor Até as Cinzas (Jiang Hu Er Nv, China/França/Japão, 2018)
Direção: Jia Zhangke
Roteiro: Jia Zhangke