Diários de Otsoga
É claro que a chave de entendimento aqui passa por uma rememoração de Aquele Querido Mês de Agosto, segundo longa-metragem de Miguel Gomes lançado ainda em 2008, não só pela referência ao mês do ano (OTSOGA = AGOSTO ao contrário), mas pela estrutura que se insinua do filme dentro do filme. O clima geral e os encaminhamentos narrativos agora são outros, atravessados pela época da pandemia, além de que Gomes divide a direção com Maureen Fazendeiro para contar a história dessa equipe de cinema que tenta rodar um filme no interior do país, em meio a uma paisagem bucólica, fazendo todos interpretarem a si mesmos, atores e técnicos, incluindo eles próprios. Mesmo com essas “brincadeiras” todas, o filme carece de um vigor criativo que ele mesmo parece evocar ao, por exemplo, começar a história pelo dia 22 e ir regressando dia a dia até o início do mês, chiste que soa curioso no princípio, esse interesse pelas inversões, mas depois se torna mero artifício vazio (com uma ou outra anedota que se perceba nessa passagem dos dias ao contrário). A graça que tais imbricações narrativas poderiam gerar se esvai muito facilmente, e o que sobra é um clima agradável de diversão, acrescida daquela desfaçatez blasé que os filmes de Gomes costumam ter, mas com resultados pouco inspiradores.
Diários de Otsoga (Portugal/França, 2021)
Direção: Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes
Roteiro: Maureen Fazendeiro, Miguel Gomes e Mariana Ricardo
O Compromisso de Hasan
O Compromisso de Hasan começa a partir de um conflito que se tornou um usual e toda parte do mundo (no cinema brasileiro tem aos montes). É o conflito do indivíduo com os donos do poder, o Davi humanista contra o Golias capitalista, e estes últimos acabam sempre esmagando os primeiros. Aqui, o senhor Hasan tem as suas terras ameaçadas porque a fiação de uma torre de energia elétrica precisa passar justamente por sua propriedade, onde ele cultiva tomates para comercialização. O filme parece que vai seguir um caminho maniqueísta habitual desses filmes, mas inteligentemente o personagem passa a fazer parte da rede de negociações e especulações nem sempre honestas a fim de preservar o seu quinhão – embora ele continue sendo um mísero indivíduo contra o sistema. Hasan também tem lá as suas pequenas garras, e o mundo não está fácil. Mas o mais curioso nesse filme do turco Semih Kaplanoglu é que toda essa disputa que toma boa parte do longa funciona como uma introdução para uma discussão a se revelar perto do fim da obra, quando Hasan precisa confrontar o seu passado. Pode parecer uma volta grande demais para uma linha de chegada muito pontual, até mesmo inesperada, mas o filme toma o seu tempo, desenvolve seus personagens sem vitimizá-los (a esposa de Hasan é ótima na sua percepção aguda da situação como um todo) e faz Hasan rever suas atitudes e seu passado com dureza, enquanto as árvores vão dando lugar a torres de metal.
O Compromisso de Hasan (Baglilik Hasan, Turquia, 2021)
Direção: Semih Kaplanoğlu
Roteiro: Semih Kaplanoğlu
O Cão que Não se Cala
Gracioso na sua forma elíptica, O Cão que não se Cala engana já pelo título. Não que não haja um cachorro (uma cadela, na verdade) que está a incomodar os vizinhos de Sebastián (Daniel Katz), ou Sebas para os mais próximos. Mas é que a trama parecia se concentrar especificamente nessa situação, ou se construir a partir dela, quando este é apenas um ponto de partida até que chegue o primeiro momento de abalo – para nós e para o protagonista. O filme da argentina Ana Katz é desses que nos dá uma bela rasteira por nos lançar em terreno desconhecido, mas não nos deixa sem chão. Os caminhos (de vida) do protagonista se sucedem com uma naturalidade impressionante, o tempo passa sem nos pesar (pesa para Sebas, mas ele não está muito incomodado com isso) e a diretora consegue ainda extrair um humor sutil de situações as mais variadas e um tanto estranhas, acenando até mesmo para um quê de ficção científica – culpa da pandemia que nos mostrou que a distopia pode estar mais perto de nós do que imaginávamos. O filme encontra saída inteligentes para nos situar em cada nova condição em que o personagem se encontra e faz isso sem alardes. Sebas também não se espanta com nada, ele segue indo, assim como a cachorra que não se cala.
O Cão que Não se Cala (El Perro que No Calla, Argentina, 2021)
Direção: Ana Katz
Roteiro: Ana Katz e Gonzalo Delgado