Regresso a Reims (Fragmentos)
O desejo maior desse filme parece ser o de colocar em evidência a história das lutas operárias no contexto francês ao longo do século XX até os dias atuais com a ascensão da extrema-direita (não só lá, mas em outras partes do mundo). Das muitas maneiras que se poderia fazer isso, o cineasta Jean-Gabriel Périot encontra uma forma bem original, ancorada no livro ensaístico homônimo do filósofo e sociólogo francês Didier Eribon. De cara, se coloca em questão a natureza do filme, se documental ou ficcional, porque Regresso a Reims (Fragmentos) é narrado por uma jovem (voz de Adèle Haenel) que conta a história de seus pais, antigos operários no interior da França; o longa usa como imagens fragmentos diversos de filmes de época e outros materiais históricos para dar corpo a uma trajetória que parte do micro (a família operária dessa mulher) para alcançar o macro e fazer um retrospecto possível das lutas sindicais e laborais francesa (ou uma parte dela). Mas cabem aí ainda uma discussão sobre a estrutura econômica da sociedade francesa, bem como o lugar da mulher nessa história de lutas e opressões históricas sofridas no chão das fábricas e em seus arredores. O próprio filme possui uma forma ensaística, ainda que o uso das imagens ressignifiquem o texto, que segue em torrente no decorrer do longa. É certo que até o final, o dispositivo do filme vai cansando e ele próprio se modifica a dar lugar aos registros das ruas, das manifestações atuais e da efervescência da luta que parece mais fundamental do que nunca.
Regresso a Reims (Fragmentos) (Retour à Reims (Fragments), França, 2021)
Direção: Jean-Gabriel Périot
Roteiro: Jean-Gabriel Périot
Murina
É sempre um fenômeno no mínimo curioso e questionável os filmes dirigidos por mulheres que se dedicam a aprisionar suas personagens femininas em tramas de opressão e violência, ou cercadas por matizes de culpa e remorso sem direito à redenção – nessa Mostra SP pipocaram alguns títulos assim. Murina é um deles, caso muito singular de uma trama em que uma jovem vive sob as garras controladoras do pai e a conivência da mãe. É certo que o filme tem toda uma pegada de denúncia contra o machismo e o controle masculino sobre os corpos femininos, de muitas maneiras, mas fica evidente também que, apesar de lutar contra isso, suas personagens acabam reféns de uma história que se constrói apenas à base de sofrimento e humilhação. No caso de Murina, filme croata que usa as belas paisagens costeiras do Mar Adriático como cenário – o paraíso servindo como ambiente de opressão –, a adolescente Julija (Gracija Filipovic) é o tempo todo podada e agredida pelo pai (Leon Lucev), e isso é feito de forma tão explícita, rude e violenta, na frente de demais personagens, inclusive da mãe (Danica Curcic), que o homem acaba se tornando uma caricatura grotesca do pai abusador, pouco crível e servindo apenas como artifício para irritar e indignar o espectador, além da jovem que o confronta, mas sempre se dá muito mal. O desfecho da história, então, acena para uma ideia de libertação e independência que não poderia ser mais falsa diante do infeliz destino da protagonista.
Murina (Idem, Croácia/Eslovênia/Brasil/EUA, 2021)
Direção: Antoneta Alamat Kusijanovic
Roteiro: Antoneta Alamat Kusijanovic e Frank Graziano
Irmandade
Até certo ponto, o longa macedônio Irmandade oferece um olhar que inverte um lugar muito comum nas histórias sobre adolescentes e um sentimento de deslocamento e não pertencimento em meio aos colegas. Maya (Antonija Belazelkoska) tem uma amiga inseparável e está a fim de um garoto da mesma turma. Coisas se passam e uma outra menina ganha a atenção do rapaz; as duas amigas, então, decidem vazar na internet uma sex tape dessa garota como forma de vingança. O filme transforma as duas protagonistas em vilãs da história e não nas injustiçadas – apesar de Maya ter um comportamento mais introspectivo que será motivo de chacota e desprezo pelos seus colegas também. O filme entra no terreno das disputas femininas, o que torna ainda mais complexas as discussões que se travam aí, sem precisar colocar a culpa nos homens – apesar dos rapazes serem muito escrotos e a protagonista ter um pai que está deixando a família para viver com outra mulher que ele já engravidou. Ainda assim, o filme se torna refém da sua própria estrutura porque, em certo ponto, ele não consegue mais avançar para além de martirizar a protagonista e fazê-la remoer a culpa, sem possibilidade de redenção.
Irmandade (Sestri, Macedônia do Norte/Kosovo/Montenegro, 2021)
Direção: Dina Duma
Roteiro: Dina Duma e Martin Ivanov
66 Questões da Lua
Havia em mim uma pequena esperança de que uma nova geração de cineastas gregos fosse fugir de um lugar comum que tomou grande parte da produção deste país nos últimos anos (pelo menos nos filmes que nos chegam filtrados pelos festivais): a de narrativas com gente estranha fazendo coisas esquisitas. Essa tendência ao bizarro, naturalizado por um viés realista, virou mesmo uma mania em que os atos destrambelhados dos personagens eram sempre justificados pela crise na Grécia (já passou da hora dessa crise acabar, não?). Pois 66 Questões da Lua, longa de estreia de Jacqueline Lentzou, infelizmente, acaba reforçando o mesmo sentido de estranheza que acompanha tais filmes, quase como se isso fosse um fator de sucesso – outro filme grego na Mostra SP, Fruto da Memória, estreia no longa de Christos Nikou, segue um caminho parecido. A história da garota que tem de voltar para a Grécia para cuidar do pai senil tem tantos buracos e coisas mal explicadas – porque o que importa mesmo é colocá-la em situações de desconforto e constrangimento – que o filme perde muita em plausibilidade. Mas sobra espaço para a garota rastejar no chão e fazer outras coisas estranhas já que se sente tão deslocada ali. Há um incômodo maior ainda pela forma como o longa filma um corpo velho em degradação, visto com repulsa pelos membros da família, o que acaba reforçando um gesto de desprezo do próprio filme sobre esse corpo. Apenas o final aponta para uma saída que destoa de outras produções gregas, sempre muito pessimistas e doídas. Aqui, a diretora resolve apostar no sentimento e na possibilidade redentora do amor, mas até aí é difícil de comprar um desfecho que não se desenvolve a contento.
66 Questões da Lua (Selini, 66 Erotiseis, Grécia/França, 2021)
Direção: Jacqueline Lentzou
Roteiro: Jacqueline Lentzou