Mostra SP: Dahomey

Urso de Ouro no Festival de Berlim deste ano, Dahomey, dirigido pela franco-senegalesa Mati Diop, pode suscitar interrogações sobre os méritos do filme para levar o prêmio máximo do Festival, não por se tratar de um documentário, mas pela importância do tema se sobrepor à relevância artística da obra. A impressão se desvai logo nos primeiros minutos do filme quando a diretora se mostra disposta a interrogar sobre os atos registrados no longa mais do que apenas celebrá-los.

O filme em si está interessado em lançar outras questões mais profundas, levando em conta seu ponto de partida: as obras artísticas e artefatos históricos que estavam de posse de museus parisienses e que retornaram, em 2021, ao Benim, depois de terem sido saqueados do então Reino de Daomé há mais de 100 anos durante as disputas neocoloniais. Há, portanto, motivos para a celebração, mas as coisas não são tão simples assim. As 26 peças restituídas não contabilizam sequer 10% do que ainda permanece em solo europeu pertencentes ao Benim, fora os que se perderam totalmente com o tempo.

Diop não pretende fazer um tratado ou construir uma peça didática sobre o assunto – o filme é bastante sucinto nos seus 70 minutos. A câmera assume o olhar observador que acompanha a chegada desse material no país e alguma reação a essa novidade. Duas estratégias narrativas se sobressaem na construção do roteiro, ampliando a contundência da situação.

Primeiramente, uma voz secular fala, em off, em nome da 26ª peça restituída – elas não têm título, mas números que as identificam – e representa uma espécie de consciência ancestral que se impõe como sujeito histórico central do processo de restituição. Mais do eu isso, elabora sobre ele: propõe, por exemplo, uma ideia de escravização que condicionou tais relíquias durante todo o tempo em que esteve “à serviço” do olhar exotizante e do bel-prazer europeus.

Mas o registro mais importante que Diop faz é o de captar trechos de um debate aberto – acontecido dentro da Universidade de Abomey-Calavi, no Benim – entre jovens estudantes africanos que discutem a importância, a validade e as implicações sociais e políticas do acontecimento. O filme apenas vislumbra trechos dessas falas, sem aprofundá-los, mas dá a ver uma série de interposições, a favor e contrárias, que o retorno das peças suscita (o mérito pela repatriação seria dos atuais representantes políticos do Benim? O valor material é maior que o imaterial? E o restante das peças?).

Acima de tudo, é importante pensar não só no que isso significa enquanto reparação histórica – que cabe a muitas nações imperialistas e suas respectivas colônias, discussão latente hoje entre os países africanos –, mas também como proposição de autoconhecimento. Alguém diz no debate: “O que saquearam foi nossa alma”. É por isso, talvez, que Diop, ao invés de se dedicar a descrever ou “estudar” as peças com a câmera (faz isso apenas rapidamente), prefere vislumbrar como isso mexe com aquelas pessoas.

E isso se conecta a outro gesto narrativo importantíssimo do filme: a maneira como registra o olhar dessas pessoas africanas mirando, curiosas, as peças e artefatos, como se quisesse entender o que se passa na cabeça delas nesse momento – a câmera do filme, muitas vezes, se posiciona atrás dos artefatos e das vitrines, como se assumisse, assim como a voz da peça nº 26, o lugar daquelas relíquias, questionando: quem é você que agora pode nos ver e se reconhecer nessa nação?

Dahomey (França/Senegal/Benim, 2024)
Direção: Mati Diop
Roteiro: Mati Diop e Malkenzy Orcel

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