Mostra SP: Em Chamas

Em determinado momento de Em Chamas, escapa pelo noticiário da TV uma reportagem sobre o desemprego que atinge em especial os jovens da Coreia do Sul, país que passou recentemente por recessão econômica. Essa é uma chave política para entender um filme tão intimista e, em certa medida misterioso, dirigido pelo realizador sul-coreano Lee Chang-dong. Adaptado do conto “Celeiros Incendiados”, do renomado escritor japonês Haruki Murakami, trata-se de um filme fácil de escapar pelas mãos porque ele não se revela facilmente em seus propósitos, mas cria uma jornada que coloca no centro a falta de perspectiva de uma juventude desencontrada.

Quem encarna esse espírito de desesperança é o protagonista Jong-su (Yoo Ah-In), jovem introvertido que faz bicos como entregador e já na cena inicial reencontra na rua uma antiga vizinha do bairro em que viveram quando crianças. Começa ali uma estranha relação de proximidade entre os dois, talvez menos por interesse de Jong-su e mais pelo sabor da aventura – e porque ele não parece ter nada de muito mais especial para fazer. Com seu jeito reservado e tímido, ele é envolvido facilmente na conversa – e na malícia – de Hae-mi (Jong-seo Jeon), que não esconde um olhar ao mesmo tempo provocador e esperto. A moça tem hábitos estranhos, como por exemplo, criar um gato de estimação invisível (que ela chama, ironicamente, de “Fervura”).

As coisas ficam ainda mais estranhas quando, após uma viagem a um país africano – período em que Jong-su só consegue desenvolver uma paixão platônica pela moça – ela retorna com um novo amigo: Ben (Steven Yeun), um sul-coreano que ela encontrou por acaso na viagem. Mais abastado e de classe alta, Ben enturma-se estranhamente com os dois e surge ali algo que soa como um triângulo amoroso, muito embora isso nunca fique explícito de fato. Há muito mais um sentimento de inadequação de Jong-su no meio daquela relação, mas uma certa tranquilidade em estar naquele meio.

Lee trabalha nessa dualidade e nos pequenos mistérios que o roteiro vai pintando, desde a curiosa saída de cena de Hae-mi até um segredo que Ben revela ao protagonista, deixando-o um tanto incrédulo e também preocupado. Lee é mestre em jogar com uma sensação de desgoverno – na mesma medida em que pouca coisa parece acontecer na trama, muito se passa no íntimo de Jong-su, a despeito do seu estado de letargia que se torna um grande vazio no fim das contas. É possível questionar mesmo os caminhos que o próprio filme vai seguindo, para além do estudo de personagens, e de como as coisas poderão se resolver.

Vale destacar que Jong-su, nos tempos livres, também acompanha julgamentos de crimes nos tribunais, fazendo relatórios para entregar a um antigo mestre. Parece um mero detalhe, mas isso é muito importante para o conceito de Justiça que ele vai desenvolver posteriormente, ou com o qual ele terá de lidar na segunda metade do filme. Talvez demore para que isso faça algum sentido na trama, e mesmo assim o filme nunca é tão taxativo sobre isso – sobre nada o é.

Lee dilata o tempo, especialmente nessa terça parte final, e investe numa atmosfera que equilibra o tom bucólico da paisagem quase rural do bairro afastado em que Jong-su mora (já próximo à fronteira com a Coreia do Norte) e sua crescente inquietação. É como se o filme não acompanhasse o desespero que toma de assalto o rapaz. Numa visita que ele faz à casa de Ben, o filme continua acrescentando mais mistérios à trama e alargando o fosso – social, particular – entre os dois personagens, até que desemboca numa cena final incrível e desoladora, um plano-sequência orquestrado com maestria e embalado com a mesma placidez que acompanha o destino sem rumos da juventude sul-coreana.

Em Chamas (Boening, Coreia do Sul, 2018)
Direção: Lee Chang-Dong
Roteiro: Oh Jung-Mi e Lee Chang-Dong

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