O chinês Jia Zhang-ke tem sido apontado como um grande cronista das mudanças sofridas pela China das últimas décadas na sua escalada econômica, em grande parte passando por cima da vida daqueles que trabalham incessantemente para garantir seu sustento e forjar essa mesma potência de país. O cineasta possui de fato uma filmografia robusta baseada neste mesmo propósito, reconfigurando-se a cada novo trabalho, desde o final dos anos 1990.
Levados pelas Marés parece ser uma síntese disso tudo, um filme testamento que parece resumir e solidificar toda uma filmografia e uma forma de ver o mundo em transformação. Em certo sentido, não há nada de muito novo aqui, nada que escape a um espectador que tem se deleitado com cada novo filme do diretor nos últimos anos. Mas o longa carrega o espírito de descortinamento do tempo e do espaço físico que historicizam a vida daquelas pessoas.
Começa com imagens documentais aparentemente aleatórias, datadas de 2001 na cidade mineradora de Datong, até encontrar uma personagem feminina que vai atravessar os anos em busca de seu companheiro. Ela só podia ser interpretada por Zhao Tao, esposa de Jia e atriz da grande maioria dos seus filmes. Ela incorporou nesses últimos anos diversas mulheres que enfrentaram a solidão e, principalmente, encarnaram o sentido da busca – por felicidade, por companheirismo, por uma vida assentada e segura – diante de um país em ruínas e em eterna reconstrução. Aqui, ela reprisa Qiaoqiao, a protagonista de Prazeres Desconhecidos (2002), o que faz de Levados pelas Marés uma espécie de retomada e continuação do filme do início de carreira do cineasta.
O longa traz imagens feitas com a jovem personagem no inicio dos anos 2000 – não saberia dizer se elas não foram utilizadas na época ou se são, de fato, extraídas do filme anterior. Ali ela parece manter um relacionamento tóxico com um homem de quem se separa, mas por quem ela passa a procurar no decorrer do novo longa. O reencontro e a necessidade de reatar os laços entre indivíduos diante dos escombros e das mudanças do tempo é a espinha dorsal do cinema de Jia, e não poderia ser diferente aqui.
Mas o que torna Levados pelas Marés especial é a maneira transversal com que o diretor conduz essa jornada. Qiaoqiao não fala uma palavra durante todo o filme, e todas as mudanças que estão em jogo aqui – a fisionomia dos personagens, a sociedade chinesa, a modernidade e suas máquinas, a paisagem urbana, suas ruínas e novas construções, a abertura cultural –, tudo isso passa diante dos nossos olhos sem que ninguém os explique, sem contextualização, sem didatismo. E mesmo assim, está tudo dito, tudo posto, tudo claro. O filme torna-se, portanto, uma grande reflexão sobre o tempo, sobre sua ação nos indivíduos e na vida social de uma China que em poucos anos não é mais a mesma.
Para além da coesão narrativa que a obra evoca e que ela mesmo aplica em sua tessitura, há também a dignidade de um artista que viu esse tempo passar, viu as coisas mudarem, a modernidade ganhar corpo e transformar a paisagem chinesa. Mas o que esse tempo fez com o indivíduo, com seus desejos e anseios? Tudo isso vira matéria-prima de um cinema humanista, reforçado pelo poder dos encontros que é a força motriz de seus personagens.
Depois de um momento chave ao fim, a cena que arremata o filme é também muito emblemática: os personagens acabam sendo impelidos por um grupo de pessoas que estão praticando corrida na rua, seguindo, assim, aquele fluxo e passam a correr juntos. Mais do que pensar na maré que os impulsionou no decorrer da História, Jia Zhang-ke nos diz também que há um longo caminho pela frente, que a estrada não findou e é preciso continuar seguindo.
Levados pelas Marés (Feng Liu Yi Dai, China, 2024)
Direção: Jia Zhang-ke
Roteiro: Jia Zhang-ke e Jiahuan Wan