Mostra SP: Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental

Das muitas ideias, insights e provocações que o filme nos joga na cara sem muito aviso prévio, uma parece fundamental para se adentrar nessa jornada caleidoscópica que é Má Sorte no Sexo ou Pornô Amador: a ideia de que aquilo é um “rascunho de um filme popular”, como está posto no letreiro inicial. Há muitas implicações nisso, inclusive uma dimensão irônica que, logo se vê, é parte constituinte desse projeto. O cineasta romeno Radu Jude tem desenvolvido até aqui um cinema muito coeso, bastante politizado e sério – não que um cinema popular não possa ser tudo isso –, mas seu novo filme é no mínimo algo fora da curva dentro de sua rica e questionadora filmografia.

Acontece que Má Sorte no Sexo ou Pornô Amador é essencialmente um filme politizado, em muitos sentidos, assim como é uma comédia que tende ao escracho, uma radiografia sobre a vida e os costumes durante a pandemia na Romênia (que bem poderia ser o Brasil) e ainda um drama de contornos morais. O mais interessante é entender que todas essas coisas podem coexistir muito bem em uma obra só, e sem o intuito de ser taxativo ou mesmo muito direto em abordar todas essas questões, se valendo muito mais de um subtexto que aparece nas frestas e nos pequenos comportamentos dos personagens.

Ora, a história dessa professora de ensino fundamental (interpretada por Katia Pascariu) que tem um vídeo de sexo seu com o marido vazado na internet e as consequências diretas disso para a sua imagem e seu trabalho acabam se tornando quase pretexto para que o filme jogue uma lupa nos comportamentos moralizadores dessa gente. Uma das boas sacadas do filme é fazer dessa pandemia um momento ideal para se colocar em questão os traços civilizatórios de um povo que viu seu país sair muito recentemente de um regime político totalitário e militarizado. Esse intervalo de tempo em que as pessoas retornam às ruas com o abrandamento da covd-19 parece perfeito para se observar como os hábitos e as atitudes cotidianas das pessoas nos espaços públicos ganharam uma dimensão mais acalorada e acabam revelando as profundezas dos seus buracos negros.

Por isso que o primeiro terço do filme é dedicado a essas andanças da personagens pelas ruas, e a câmera não penas a segue, como desvia o olhar para observar outros sujeitos e espaços em que se ouvem diálogos aterradores de gente mau educada, ignóbil, grosseira e racista destilando palavrões e toda espécie de pensamento mesquinho e abjeto uns sobre os outros. É o mesmo tipo de comportamento que vai desaguar naquela aterradora reunião de pais e mestres (!) na parte do final do filme, tão assustadora quanto hilária e também humilhante, tudo junto e misturado.

É certo que o diretor faz aqui uma alegoria em que se aumenta deliberadamente o tom dos discursos, se excede no retrato de atualidade, como forma de escancarar mesmo as imoralidades – o que permite inclusive ao filme a sua guinada mirabolante e fantasiosa no final em uma das cenas de encerramento mais insanas dos últimos anos. Com isso, o filme lança sua grande questão: o que lhe parece mais imoral, o vídeo vazado da professora ou o comportamento de quem a acusa e ironiza?

Onde está a pornografia, no fim das contas? Essa é uma outra interrogação pertinente. Afinal, mais do que se perguntar quais os limites do humor, há de se questionar qual é o limite do pornô. E este não estaria apenas relacionado ao que pertence ao campo do sexual, mas também daquilo que é tão excessivo que se torna imoral e degradante, em muitos sentidos.

Daí que se somam ao “popular” as ideias de “humor”, “pornô” e “politização”, para ficar no básico, como construções conceituais que o filme faz dialogar e tensionar de modo talvez desordenado, mas muito estimulante enquanto discussão ontológica das coisas, sem rigor acadêmico, é claro. Não queremos abrir aqui um abecedário de definições, apesar de o filme brincar também com esse formato naquela segunda metade com um dicionário de palavras e expressões avulsas a apontar para muitas direções e provocações. Esse momento do filme é salutar não apenas para expandir tais conceitos, além de muitas outras questões que se abrem e circundam a trama, mas ainda para amalgamar tudo aquilo que um filme pode ser: comédia, drama, horror social, pornografia comportamental, fantasia farsesca, retrato político e balbúrdia. Ou seja, o mais popular possível.

Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (Babardeală cu Bucluc sau Porno Balamuc, Romênia/Reino Unido/Suíça/Croácia/República Tcheca/Luxemburgo, 2021)
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude

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