Mostra SP: Meu Nome é Daniel

Meu Nome é Daniel é uma pequena joia na nossa filmografia recente. O filme estreou no encerramento do festival Olhar de Cinema, em Curitiba, e chega agora à Mostra SP, sendo mais um desses trabalhos em que o próprio realizador olha para sua história, seu passado e sua família, abusando de imagens de arquivo caseiras feitas no seio da intimidade.

No entanto, guarda uma peculiaridade: Daniel Gonçalves nasceu com um tipo de distúrbio degenerativo que ninguém sabe exatamente o que é – muito se assemelha a um tipo de paralisia cerebral, mas não é diagnosticado exatamente assim. Um dos gatilhos do filme passa a ser a busca de Daniel e seus familiares, desde seu nascimento, por respostas científicas sobre o que de fato o acomete porque a medicina não conseguiu explicar até então.

Narrado em primeira pessoa, Daniel se coloca como um indivíduo que aprendeu desde cedo a conviver e superar os empecilhos impostos pela doença – dificuldade de locomoção, fala embargada, atrofia dos braços e pernas. Mas ele recusa terminantemente a alcunha de “coitadinho”. Sua inteligência e perspicácia são proporcionais à força de vontade e desprendimento ao lidar com certas barreiras, físicas ou emocionais, chegando a alcançar irreverência e grande senso de humor em muitos momentos.

Isso faz de Meu Nome é Daniel um filme livre de qualquer traço de autocomiseração e também um relato dos mais sinceros e íntimos de um realizador sobre si mesmo. A família guarda uma série de registros fílmicos feitos quando ele era criança – até mesmo como exercício terapêutico para colocá-lo em evidência e estimulá-lo a falar e se movimentar. O diretor faz uso farto do material, expondo uma vida repleta de pequenos desafios diários, mas demonstra também a criança feliz e cheia de energia que ele foi, tal como as demais. O jovem homem que ele se tornou hoje resguarda esse mesmo espírito de disposição e motivação energizadora para seguir uma rotina que se quer igual a de qualquer outra pessoa.

Ao mesmo tempo, o filme é capaz de revelar certa consciência da força e da capacidade da linguagem cinematográfica – e Daniel é formado em Cinema – não só para contar sua história e expurgar seus demônios, mas também para construir uma narrativa com camadas. Há uma cena em especial que me chama muita atenção: Daniel se filma na cozinha tentando fritar um ovo. Essa operação, tão simplória, torna-se um calvário pela dificuldade motora de riscar um palito de fósforo; ele tenta uma, duas, três vezes. No início é possível pensar que, lógico, no final das contas ele vai conseguir – seriam as pequenas vitórias do dia a dia; mas existe também a possibilidade de não dar certo – seria o caso de assumir que não dá pra vencer sempre. Mas eis que Daniel tem uma terceira, e surpreendente, opção: ele olha pra câmera, dá um sorriso maroto e diz “Corta!”, a cena acaba.

“Corta!” não quer dizer nem, sim nem não. Não é vitória, mas também não subentende derrota. O corte aponta apenas para uma mudança, uma passagem para outra paisagem, outro tempo. É também uma terceira possibilidade, via cinema, de lidar com os percalços do dia a dia sem precisar ser taxativo sobre eles, sem ter de ser branco no preto. E essa terceira via é ainda aquela que Daniel teve de criar durante a vida para seguir existindo e coexistindo entre os demais, no meio da multidão, sendo nem sim nem não. O cinema, e este filme aqui, é o resultado desse percurso do meio, que é também uma constante busca por autoconhecimento e aprendizado.

Como nem tudo são flores, o filme comete um deslize que não passa desapercebido, já nos minutos finais: Daniel faz uma última reflexão sobre o lugar de fala dele, mas acaba assumindo, fisicamente, uma persona que não lhe cabe. Existe ali um claro e relevante intuito de se colocar no lugar do outro – algo que o próprio Daniel angaria para si quando o filme nos propõe olhar para ele, para sua história nada autopiedosa. Mas ambos os movimentos possuem seus limites pelo simples fato de que tal operação nunca será completa – nunca nos sentiremos como o outro porque, simplesmente, só podemos ser nós mesmos – o que já é um fardo por si só. De qualquer forma, a cena está longe de desmerecer o filme. Meu Nome é Daniel, como exercício de autodescoberta, passa também por esses tropeços e caminhos, onde há drama, humor, afeto, mas sobretudo, persistência.

Meu Nome é Daniel (Brasil, 2018)
Direção: Daniel Gonçalves
Roteiro: Daniel Gonçalves, Vinicius Nascimento e Debora Guimarães

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