Um adolescente sobe correndo as escadas, a câmera tremulante tenta acompanhá-lo por trás, não há trilha sonora, mas certa tensão na cena. Pronto, estamos definitivamente num filmes dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, não tem erro. Os cineastas belgas desenvolveram uma estética tão particular que sua marca é indelével. Se seu cinema anda se repetindo, aí é outra discussão (que eu comecei aqui). O certo é que O Jovem Ahmed é mais uma bela peça na robusta filmografia dos Dardenne, nada de novo no front do cinema que eles praticam, mas se trata de um ótimo estudo de personagem indócil em vias de explosão interna, traduzido como urgência e instabilidade.
Ahmed é um jovem de família convertida ao islamismo. Em Bruxelas, frequenta a comunidade islâmica e tem uma inclinação para o lado mais radical da religião. Desenvolve uma leitura rígida do Alcorão e já internalizou comportamentos ditados pelos preceitos religiosos – não pode ter nenhum tipo de contato físico com mulheres, por exemplo. Tem também um primo que já se sacrificou em nome de Alá, espécie de herói a quem Ahmed venera.
A onda de conversão ao islamismo na Europa tem sido tema de muitos filmes (o mais recente talvez seja Adeus à Noite, de André Techiné). Nas mãos dos Dardenne, porém, a discussão sobre a intolerância religiosa, o choque cultural e o desarranjo familiar que isso provoca estão presentes, mas o ponto central aqui é outro: um retrato de uma obstinação. Ahmed é mais um desses jovens indóceis que povoam a cinematografia dos diretores (poderia ser um irmão de Rosetta, no filme homônimo, ou o indomável Cyril, de O Garoto da Bicicleta). São todos personagens irados, destemidos, vão até o fim nas suas convicções e pulsões. Gente difícil de dobrar, apesar da idade, ou talvez por causa disso mesmo. A diferença com Ahmed é que os fins almejados são nocivos e perigosos.
Curioso pensar no prêmio de Direção que os Dardenne receberam no último Festival de Cannes – eles que já foram super premiados no festival francês em muitas categorias, mas pela primeira vez como melhores diretores – depois de terem solidificado uma marca de autoria já há algum tempo. Se não há novidade, portanto, no gesto de pôr em cena, há certamente uma habilidade no desenvolvimento do roteiro – algo que faltava e muito no filme anterior dos diretores, o preguiçoso A Garota Desconhecida.
O Jovem Ahmed é muito direto e não perde muito tempo com trivialidades; vai direto ao ponto, o que oferece oportunidades para que os rumos do protagonista passem por curvas dramáticas muito acentuadas. Ao mesmo tempo em que pega o espectador de surpresa, essas pequenas reviravoltas potencializam certas reflexões que só ajudam a dar maior dimensão a esse personagem trágico, mas muito bem complexificado pelo roteiro.
Ora, o filme já começa com uma discussão acalorada na pequena comunidade islâmica do bairro: uma professora que ensinar árabe para as crianças utilizando outros conteúdos que não sejam o Alcorão; os pais se dividem e acham que o livro sagrado para os mulçumanos deve ser a única cartilha usada para o aprendizado – da língua e dos dogmas. Essa mesma professora vai entrar em conflito direto com Ahmed por sua insistência em questionar os comportamentos cada vez mais fechados e agressivos do garoto, em especial com as mulheres. É a partir disso que o garoto, influenciado por um radical imã – espécie de jovem líder religioso encarregado de “treinar” alguns fiéis, como tutores para o Islã –, vai planejar o assassinato da professora.
Esse, no entanto, é apenas um ponto de partida que ganha muitos desdobramentos no decorrer do filme. A interrogação que o longa parece nos fazer não está no “o quê” (a tentativa de homicídio) ou no “como” (golpes de faca) propriamente dito, mas em por que o garoto segue obstinado na sua jornada de seguir tais preceitos religiosos e de que forma isso passa a se arraigar na sua personalidade. Mais adiante, surge para o personagem um interesse amoroso, e o filme consegue nuançar o Ahmed misógino com o adolescente em vias do desabrochar adolescente. A obstinação, então, lhe fraqueja ao mesmo tempo que lhe parece firme, e é só nos minutos finais que o filme conclui seu conto moral, agridoce, mas ainda repleto de humanismo. Esse do qual os Dardenne nunca esqueceram.
O Jovem Ahmed (Le Jeune Ahmed, Bélgica/França, 2019)
Direção: Jean-Pierre Dradenne e Luc Dardenne
Roteiro: Jean-Pierre Dradenne e Luc Dardenne