Já disse aqui antes que o cineasta romeno Radu Jude pode nos chegar em duas chaves distintas: pela via do deboche e insanidade ou pela via da sobriedade. Ao trabalhar com imagens de arquivo criadas ou geradas por terceiros nos seus dois últimos filmes, com pegada mais experimental, o cineasta romeno parece fundir esses dois mundos, a partir de conceitos muito sólidos em ambos os projetos.
Com Oito Cartões-Postais da Utopia, ele mergulha no universo da publicidade audiovisual do seu país no momento de abertura política pós queda do regime socialista e a entrada gradual ao mundo do capital. Quem já fazia essa investigação em nível acadêmico era o filósofo e pesquisador Christian Ferencz-Flatz com quem Jude divide os créditos de direção e roteiro aqui.
O filme é um apanhado frenético de peças publicitárias veiculadas nos últimos 30 anos que representam a transição histórica e social de um país até pouco tempo refém de um governo ditatorial opressor. O consumismo e as possibilidades do acúmulo e desfrute de bens materiais, seja de comida, roupas ou carros, são evidências maiores nos vídeos, mas os diretores dividem as propagandas em blocos temáticos como capítulos em que se evidenciam tópicos maiores ligados à História da Romênia, à formação do homem e as vicissitudes do povo romeno.
O humor e o inusitado das “narrativas” curtas que as peças oferecem não estão distantes do tipo de desfaçatez narrativa que Jude vem apresentando em alguns de seus filmes mais irônicos e escrachados (como o divertido e tresloucado Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental). Mas neste caso tem o sabor da produção “real” com as intenções, disparates e ideologias que escorrem das cenas. A forma como elas são apresentadas no filme, sem contextualização e num ritmo acelerado próprio da linguagem publicitária, acentuam essa enxurrada de realidade fabricada pela máquina de vender um novo estilo de vida.
Já Sleep #2 parte de um dispositivo um tanto mais rígido: o uso de imagens da câmera de vigilância que filma o túmulo de Andy Warhol 24 horas por dia. Jude faz uma montagem de momentos distintos dessa filmagem contínua, por vezes sem ninguém no lugar, mas em grande parte com visitantes, fãs e admiradores que visitam o túmulo do artista enterrado em um cemitério da Pensilvânia.
Trata-se de uma espécie de provocação continuada do filme experimental Sleep que Warhol fez nos anos 1960 e que registrava as cinco horas de um homem dormindo. A ironia da dualidade morte/sono está bem posta aqui, e um registro aparentemente banal de vigilância encontra uma reinvenção conceitual a partir da ideia de idolatria a este ícone da cultura pop que Warhol se tornou, coisa que ele mesmo evocava e discutia na sua pop-art.
Mas diferente de Oito Cartões-Postais para a Utopia, Sleep #2 basta-se apenas pelo inusitado das situações que a câmera capta – ou que o filme transforma em inusitado pelo simples ato de destacá-la na narrativa. Há um interesse em ver o que pessoas tão distintas vão fazer no túmulo de Warhol – para além de tirar selfies e lhe levar flores e latas de sopa Campbell. O longa até tenta rearranjar essas imagens através da montagem e do uso do zoom, mas isso não impede certo sentido de repetição e um distanciamento depois de passada a curiosidade inicial pela gesto narrativo do experimento de Jude.
Oito Cartões-Postais da Utopia (Opt Ilustrate din Lumea Ideală, Romênia, 2024)
Direção: Radu Jude e Christian Ferencz-Flatz
Roteiro: Radu Jude e Christian Ferencz-Flatz
Sleep #2 (Idem, Romênia, 2024)
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude