Mostra SP: Pacarrete

No interior do Ceará, uma mulher sonha em se apresentar como bailarina clássica. A ocasião não poderia ser mais oportuna: a cidade de Russas prepara-se para festejar seu aniversário de emancipação. Pacarrete (Marcélia Cartaxo) não titubeia, chegou a vez de mostrar para todos o seu talento, ela que é tida como a velha maluca do pedaço. O longa de estreia de Allan Deberton não desgruda dessa personagem. E é com ela que o filme faz um estudo lírico e cru sobre a velhice, sobre o poder da arte e, sobretudo, sobre os sonhos e nossas obstinações pessoais.

“Pacarrete”, em francês, significa “margarida”. Esse é o nome artístico que a protagonista do filme gostaria de ter, ela tão obcecado pelo universo francófono e pela língua de Edith Piaf. Encantada pela música clássica e pelo balé, desde sempre nutriu o desejo de se tornar uma bailarina profissional, algo que a vida no interior nordestino lhe negou. Marcélia Cartaxo, grande atriz, personifica essa figura com uma riqueza de detalhes impressionante. Pacarrete é destemida, desaforada, um tanto ranzinza, sonhadora e não leva desaforo pra casa.

Interessante como o filme significa essa personagem tão ilustrativa das pequenas comunidades que é a “doida da cidade” (quem viveu no interior sabe bem que esse tipo existe em qualquer cidadezinha pequena – nas metrópoles eles também existem, mas são menos percebidos). A Pacarrete aqui, aliás, é claramente espelhada numa dessas mulheres que viveram na cidade do interior onde Deberton passou sua infância, inspiração direta para o seu filme.

O longa saiu do Festival de Gramado ovacionadíssimo, oito Kikitos debaixo do braço (filme, direção e, claro, prêmio de atriz mais que merecido). É o lugar ideal para sua consolidação – ou o início dela, já que o filme vem arrebatando prêmios e a aprovação do público por onde passa, uma vez que Pacarrete não esconde sua verve de cinema popular. É um filme claramente feito para dialogar diretamente com um público amplo, ao mesmo tempo em que possui o cuidado técnico e narrativo para o espectador mais exigente, atualmente um equilíbrio muito difícil de alcançar.

É curioso pensar que talvez desde A Hora da Estrela Marcélia Cartaxo não tenha tido um papel de destaque num longa-metragem; um filme para chamar de seu. É certo que há um elenco de apoio muito bom: Zezita Matos, como a irmã, e Soia Lira, como a empregada, ambas sofrendo com as variações de humor de Pacarrete, além de João Miguel, pequeno quitandeiro, por quem a mulher nutre uma paixonite aguda. Mas todos eles servem para engrandecer os passos ritmados e embrutecidos dos caminhos tortuoso da protagonista.

O trabalho de Cartaxo é magistral não só porque ela prova a vitalidade e o talento acumulados em anos nas telas e nos palcos, mas porque há mesmo um exercício de complexidades que envolvem a construção de uma personagem como essa. A postura corporal altiva, o tom agudo da voz e principalmente a relação com a dança clássica parecem desafios bem apresentados. Nas mãos de uma atriz estupenda como Cartaxo, nasce uma das grandes personagens femininas idosas do cinema brasileiro recente.

Deberton sabe aproveitar bem a presença de Cartaxo e oferece um retrato muito bem dimensionado para a personagem. Ela tem lá suas idiossincrasias, teimosias e “megerices”, mas o filme lhe é super carinhoso, sem que isso represente condescendência – a população de uma cidade interiorana sabe ser muito cruel com pessoas como ela. Ao mesmo tempo, o extrai muito humor da postura desbocada e impulsiva da personagem. No entanto, o filme foge da armadilha de transformá-la apenas num motivo de riso e chacota (em um paralelo rápido, é possível dizer que se trata de uma representação oposta ao de uma Regina Casé no recente Três Verões, de Sandra Kogut, em que a atriz repete o papel de empregada doméstica e se torna mero alívio cômico em grande parte do filme).

Pacarrete, ao contrário, não cai nesse estereótipo porque existem muitas outras camadas a completar e complexificar a personagem, tal qual uma boneca russa, cheia de surpresas, mas também de vitalidades e desejos. O gesto maior de delicadeza e força do filme está na compreensão do quão grande, vasta e nobre essa mulher pode ser.

Pacarrete (Brasil, 2019)
Direção: Allan Deberton
Roteiro: Allan Deberton, Andre Araujo, Samuel Brasileiro e Natália Maia

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