Áspero em muitos sentidos, seja na paisagem do interior da Índia com suas comunidades rurais pobres, seja na dimensão emocional dos seus personagens, Pedregulhos é uma antítese do imaginário que temos de um cinema indiano mais clássico, espalhafatoso e alegre na sua sanha musical. Em certo sentido de encenação, é também um filme desconjuntado, que se poderia acusar de “mal filmado”, um tanto irregular, mas com uma energia de pulsão criativa invejável, apesar de suas pequenas pretensões.
A trama é simples: um homem alcóolatra arrasta o filho pequeno em busca da esposa que saiu de casa para fugir de um convívio violento. O que este homem (Karuththadaiyaan) tem de agressividade, o filho pequeno (Chellapandi) tem de calma e passividade – algo que será questionado pelo próprio filme no final. Calado e atento, o garoto observa, não sem preocupação e alguma cota de medo, a exasperação do pai e os conflitos que se desenham e chegam às vias de fato nessa busca desenfreada. No entanto, o universo de pobreza e desintegração familiar é a camada mais superficial que o filme constrói enquanto observação de um cotidiano de privações e miserabilismo a tornar muito dura a vida daquelas pessoas – o que não justifica a violência e a bebedeira, mas nos ajuda a entender o buraco em que se afunda essas pessoas naquele contexto de existência.
Em uma dimensão mais profunda, porém, o cineasta P. S. Vinothraj, estreando na direção de um longa-metragem, investe numa energia de encenação que o permite sustentar um senso de impressões muito palpáveis através do cinema. É como se se pudesse sentir soltar da tela a raiva e a parcimônia representadas por pai e filho, respectivamente, sobretudo a partir do gesto da caminhada em que o homem avança na estrada com o garoto atrás mantendo certa distância. Grande parte do filme se faz por esse processo de deambulação em que os gestos, atitudes, olhares e pequenas decisões dos personagens marcam a sua persona cênica de modo muito forte e representativa de seus papeis na trama.
A história que poderia muito bem cair num drama rasgado, no melodrama de redenção do homem ferido ou na comédia mais escrachada, mantém-se firme no clima de tensões e do peso da violência que paira naquela situação – peso que recai, inclusive, sobre a criança, não apenas psicologicamente como testemunha dos conflitos familiares, mas literalmente como vítima das agressões do pai. O filme não se priva dessas imagens mais duras, evocando um realismo documental e sem concessões.
É nesse sentido que a aspereza do filme assume muitas vezes um tratamento muito cru na forma de filmar, o que dá essa impressão de direção desordenada – ao mesmo tempo que o trabalho de câmera, no início, parece desleixado e pouco “profissional”, o diretor é capaz de compor um plano-sequência incrível num momento chave de encontro entre os personagens; ou então, em uma das minhas cena preferidas, quando uma garotinha junta umas folhas ressecados e duras, que mais parecem pirocópteros, e brinca jogando-as no ar, provocando uma chuva de folhas secas que lhe oferece uma passageira alegria. São pequenos milagres assim que o filme faz surgir da aridez.
Há, portanto, uma energia na concepção do filme, acrescidas de algumas ideias que à primeira vista não fazem muito sentido na trama (a pedra que o garoto coloca na boca, a figura que o homem enxerga na estrada e que só apreendemos como imagem subjetiva – seria o olho ajuizador do espectador?) que tornam Pedregulhos um filme em certa medida destrambelhado, irregular, mas muito pulsante, consciente das suas fragilidades, mas com uma vontade muito grande de fazer valer um ponto de vista sobre a situação que cria (em certa medida, lembra o cinema de Adirley Queirós e o mesmo gesto de enfrentamento ao fazer cinema com coração latejando e poucos recursos).
O fato de Pedregulhos ter vencido o Tiger Award este ano, prêmio máximo do Festival de Roterdã – evento tão propenso a um tipo de cinema mais provocador e menos interessado em obras que se marcam por certo verniz internacional de “bom gosto” dos grandes festivais – responde muito bem a essa intensidade que o filme busca. Ele acaba não apenas confrontando o cinema indiano clássico, mas também essa polidez de um cinema muito palatável (e não necessariamente ruim por causa disso), oferecendo, em troca, algo mais grosseiro e brutal, mas nem por isso menos belo e provocador.
Pedregulhos (Koozhangal, Índia, 2021)
Direção: P.S. Vinothraj
Roteiro: P.S. Vinothraj