Mostra SP: O Paraíso Deve Ser Aqui

O taxista pergunta ao homem sentado no banco de trás: “De onde o senhor é?”, “De Nazaré”, “Nazaré é um país?”. Não há resposta. O homem é o cineasta Elia Suleiman, vivendo um personagem que é ele mesmo no filme – recurso supra utilizado nos seus demais trabalhos. Ele é palestino, e a ideia de país para um palestino parece muito difícil de se explicar. O Paraíso Deve Ser Aqui talvez seja uma maneira de ilustrar o que significa ter uma nacionalidade sendo essa mesma nacionalidade tão questionada e invisibilizada por aí.

Dito assim, soa como um filme panfletário – e é uma leitura muito pertinente que o seja. Porém o longa de Suleiman não poderia ser mais particular e original na maneira como articula questões políticas tão fortes e contundentes, e com tanta graça e precisão. Talvez o cineasta nunca tenha discutido com tanta frontalidade a ideia de pertencer a um país, de ser palestino e ter uma Nação, algo central para os árabes que vivem (e sobrevivem) em território israelense.

Estamos aqui diante de um cineasta de mão firme e personalidade fílmica expressa numa obra coesa, apesar de curta. O Paraíso Deve Ser Aqui é mais um desdobramento, formal e temático, de um mesmo tipo de caminho narrativo espelhado nos filmes anteriores do cineasta: é dividido em esquetes ou situações diversas na rotina desse personagem, sempre permeado por uma série de simbolismos e significações que dizem muito por si sós, abertas e múltiplas. Os planos são sempre estáticos, os diálogos, mínimos. Tudo que compõe o quadro parece ter sido colocado lá milimetricamente, seja para reforçar o humor, acentuar um lado dramático ou enriquecer uma interpretação.

Suleiman, mais Buster Keaton do que nunca, segue fazendo seu cinema de humor refinado e gags visuais com os dois pés na politização. Ele até se parece fisicamente como Keaton (talvez mais na juventude), o que aproxima ainda mais modos muito próximos de se fazer humor. O comediante que nunca ri, epíteto de Keaton, cabe perfeitamente a essa persona que Suleiman encarna em seus filmes. Aqui claramente ele vive um cineasta que busca financiamento para um filme. Para isso, sai da Palestina e viaja para Paris e Nova York.

Por mais que exista um interesse metalinguístico aí, que é o de colocar em questão a dificuldade para fazer cinema num contexto tão particular como o dele (e há uma cena hilária com a participação de Gael García Bernal também sobre isso), Suleiman entende também que nada melhor do que o deslocamento geográfico (a experiência de trafegar por outros países) para sublimar e refletir o conceito de identidade nacional, a própria ideia de casa e pertencimento.

É quando o filme abandona certa zona de conforto, uma paisagem reconhecível que já estava lá nos filmes anteriores, para arejar a coisa e propor novas vistas. Das ruas parisienses e seus muitos imigrantes nem sempre bem-vindos nos país, até a curiosa representação do americano médio armado até os dentes mesmo dentro do supermercado, o olhar aguçado de Suleiman passeia por esses ambientes com a precisão, curiosidade e perspicácia do melhor cronista. Observa e investiga o espaço do outro – tão diferente e supravalorizado como são essas cidades-modelo, exemplos de modernidade e liberdade total – para encontrar suas idiossincrasias e marcas culturais que individualizam os países, mas nunca os hierarquizam. Onde fica o paraíso, afinal?

Num filme repleto de ótimos momentos e de bons personagens, talvez um das sequências que melhor traduzem a sofisticação da mensagem política que o filme busca transmitir seja a da “anja” em Nova York. Uma mulher, com asas de anjo e a bandeira da Palestina pitada sobre os seios desnudos, aparece num parque (seria uma manifestante da causa árabe/palestina?) e é perseguida, serelepe, por policias. É engraçada a maneira coreografada com que eles correm atrás dessa mulher (ou seria um espectro?) que consegue fugir de modo inesperado, mágico. Seria o símbolo dessa perseguição insistente, esse sentido de liberdade e busca pela tranquilidade de um lar que será sempre examinado, questionado e negado. Afinal, o que é ter um país?

O Paraíso Deve Ser Aqui (It Must Be Heaven, Palestina/França/Turquia/Canadá/Alemanha/Catar, 2019)
Direção: Elia Suleiman
Roteiro: Elia Suleiman

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos