O longa cearense Tremor Iê chega à Mostra Aurora carregando um discurso político mais firme e frontal, espécie de chacoalhada que se espera de um festival tão politizado como a Mostra Tiradentes – e num ano tão complicado como este, após um processo traumático dele eleições presidenciais.
De imediato, trata-se de um filme de resistência urbana dentro de um país distópico, com toques de futurismo, mas muito calcado no Brasil de hoje, nas forças de poder que operam a fim de massacram e silenciar a periferia, a população pobre, os LGBTQs, as minorias. É um filme muito centrado também na força de união feminina, evocando ancestralidade e sororidade, mais os toques dos tambores, zabumbas e demais instrumentos musicais que fazem parte das vivências de suas personagens.
Encontramo-nas separadas umas das outras, à medida em que vão se reencontrando e preparando uma cartada final. Aos poucos vamos vislumbrando um fio narrativo e descobrimos que elas se dispersaram, num passado difícil de prever, a partir de violenta ação policial que sufocou manifestações populares em que elas estavam envolvidas – que podem ser as de 2013. Seguiu-se um golpe de estado que deixou o país na mão de grupos escusos e opressores. O Brasil torna-se então esse modelo de Estado totalitário referenciado nas histórias de ficção científica distópicas.
Mas o que interessa ao filme é menos a constituição de uma narrativa e um universo diegético calcados no gênero em si, e mais no que esse contexto pode revelar de aterrador na postura política que oprime e sufoca as vivências, especialmente aquelas que se dão nas periferias. É aí que a noção de resistência ganha protagonismo no filme a partir da vontade dessas mulheres de se reunirem e agirem contra o sistema, o que significa também celebrar sua própria persistência de estar no mundo. Inicialmente, esse ato se dá em foro particular, íntimo, de fortalecimento recíproco, para depois ganhar um movimento de ação mais objetivo, conjunto, que se quer de inquietação.
O filme tem muita vontade de arriscar, de partir para uma proposição narrativa que não passa necessariamente por uma construção esquematizada nos moldes clássicos, antes se jogando a uma encenação muito livre ou que ao menos não reproduz nenhuma fórmula ou modelo pré-estabelecido, nem por ele próprio. É como se essa narrativa fosse se moldando a partir das necessidades das personagens e seus movimentos em direção à tomada de ação. Ainda assim, é perceptível ali o estabelecimento de uma estética muito própria que está na postura dos atores em cena – entre o antinaturalismo e o espontâneo –, na cadência temporal dos planos que demoram a mudar, na ambiência tomada pela escuridão na maior parte das cenas.
A memória e a oralidade também são elementos essenciais nesse processo porque é a partir do reencontro das amigas e da partilha de seus anseios e pontos de vista que se costura essa rede de resistência. Um dos melhores momentos do filme transcorre numa dessas (longas) conversas em que uma delas narra à outra, ao pé de uma fogueira, o calvário de terem sido levadas para a delegacia, passando pelo perrengue de quase prisão. Para além da riqueza textual, calcada na oralidade e na presença de cena das duas atrizes, existe ali toda uma consciência da sólida engrenagem de opressão, do risco e medo que não se esconde, mas também da força política que emana daqueles corpos em pulsão de oposição.
Ainda que circunscrita a poucas pessoas, toda essa movimentação – que se dá sempre nas sombras, em meio à escuridão, às escondidas – está imbuída não de uma pretensão de mudar o mundo, mas antes de fazer crer na força da ação que significa, no fundo, afirmação do inconformismo e necessidade de insistir na presença e na voz, já que a opressão se dá em forma de silenciamento e morte. Por isso, enquanto potência do gesto revolucionário, seja tão simbólico que o ato “subversivo” que elas conduzem desemboque no uso da palavra para reverenciar quem luta ou lutou, quem resiste ou pereceu na batalha. Nessa mesma esteira, a música emerge com a mesma força, a musica que faz tremer, que mobiliza, acalenta e levanta.
Tremor Iê constrói, portanto, todo um imaginário sócio-político-futurista sem nunca abandonar as raízes de uma realidade brasileira latente em muitos sentidos (contextual, histórico, pessoal e íntimo) e é muito feliz em deixar isso exposto em toda a duração do filme. As questões que são caras para as realizadoras, atrizes e roteiristas (uma construção mesmo coletiva) nunca saem de cena, o filme nunca deixa de firmá-las em suas bases de sustentação e desenvolvimento. É certo que por vezes tais gestos sejam reiterados e cíclicos demais, dando voltas ao redor de si mesmos, mesmo que seja para continuar dizendo: “Não mexe comigo que eu não ando só”.
Tremor Iê (Brasil, 2018)
Direção: Elena Meirelles e Lívia de Paiva
Roteiro: Deyse Mara, Elena Meirelles, Lila M Salú, Lívia de Paiva e Petrus de Bairros