O Acontecimento

Em 1963, a escritora francesa Annie Ernaux batalhou para fazer um aborto clandestino, já que a prática era proibida por lei no país. Vinte anos mais tarde, ela narrou em livro os acontecimentos daquele período e sua história quase solitária para se livrar do feto indesejado. Agora, a trama ganha as telas com a adaptação do seu livro para o cinema.

O filme O Acontecimento, dirigido pela cineasta francesa Audrey Diwan, venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza ano passado, com este que é apenas o seu segundo longa-metragem. O filme teve exibições nas últimas semanas pelo Festival Varilux e entra agora em cartaz.

Não por acaso, a protagonista do filme chama-se Anne (Anamaria Vartolomei), uma jovem estudante universitária que cursa Letras e possui o sonho de ser uma escritora. Estamos na França anterior ao Maio de 68 e da revolução sexual que daria uma nova guinada nos anos seguintes. Antes disso, a crença absoluta no padrão do casamento heteronormativo era algo sagrado, assim como as noções de castidade e celibato para as mulheres eram vigiadas de perto pelas famílias.

O aborto, então, era um grande tabu – e continua sendo até hoje –, considerado prática ilegal e passível de prisão, não só na França como em vários lugares do mundo. É por isso que a protagonista do filme assusta-se quando se descobre grávida de um rapaz que conheceu há pouco tempo. Não tem condições de criar o filho e vê a situações como impedimento para seguir os passos da sua carreira e vida profissional.

Começa, então, uma investigação quase que subterrânea para conseguir informações de como fazer um aborto clandestino. Cada vez mais a personagem se vê sozinha naquela situação, já que não conta com o apoio do parceiro, da sua mãe e pai (para quem nem sequer consegue contar o seu segredo) e nem das amigas que, por medo de retaliação legal, também se afastam de Anne.

O filme de Diwan faz um belo par com outras obras que tratam do abroto, como é o caso do impactante 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, do cineasta romeno Cristian Mungiu, e o mais recente Lingui – Os Laços Sagrados, do cineasta do Chade, Mahamat-Saleh Haroun (filme disponível atualmente na plataforma MUBI).

Ofício de escritora

Diwan constrói um filme seco, que vai se tornando cada vez mais árido à medida que a personagem se vê mais sozinha na sua corrida contra o tempo. Apesar dos tensionamentos que isso traz, especialmente nas cenas de exames médicos, o roteiro do filme consegue manter uma objetividade sem panfletarismos ao tratar do assunto.

Anne mostra-se desde o início uma jovem destemida, muito senhora de si e de personalidade marcante, embora tenha o seu lado juvenil da garota que só quer se divertir – e ser dona de seu próprio corpo, quando essas discussões feministas ainda eram pouco discutidas no seu contexto social. Anne chega a sofrer certo bullying por parte de outras alunas universitárias que se incomodam com o seu jeito mais livre de ser e de se relacionar com os homens.

Mas ela também quer construir uma carreira, seguir os seus estudos. É muito curiosa a relação que o filme estabelece entre ela e um de seus professores (interpretado pelo ator Pio Marmaï). Em um dado momento, ele insinua que ela poderia ser uma ótima professora no futuro, quando na verdade ela tem ambições maiores.

Para aquela sociedade, as mulheres estariam relegadas a funções de menor sucesso e subalternos. Anne quer e sabe que pode mais, apesar da sociedade lhe impor os papeis comportados destinados à mulher, especialmente o de mãe. O Acontecimento é um filme cirúrgico nesse sentido, na busca de discutir, a partir do direito ao aborto, a própria existência e a resiliência femininas.

O Acontecimento (L’Événement, França, 2021)
Direção: Audrey Diwan
Roteiro: Audrey Diwan e Marcia Romano

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 10/07/2022)

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