O Escândalo

Assédio sexual de jornalistas é tema de O Escândalo*

Desde que o outrora superpoderoso produtor de cinema Harvey Weinstein foi acusado de assédio e agressão sexual por uma série de mulheres com quem trabalhou, a indústria cinematográfica hollywoodiana foi chacoalhada pelo tema. Especialmente pelas reações femininas que exigiam um basta nos comportamentos de abuso de poder que acabavam em crimes sexuais contra as mulheres.

Por melhores intenções que possa ter, não é difícil pensar em O Escândalo como uma reação paralela ao movimento #MeToo, pegando carona no tema do momento, reverberando um outro episódio de violência sexual. O filme dirigido por Jay Roach vai se debruçar sobre o caso real do magnata das comunicações Roger Ailes (vivido por John Lithgow), poderoso presidente executivo do canal de TV americano Fox News.

O filme divide sua atenção entre os casos que envolvem três jornalistas assediadas por Ailes. Tudo começa com Gretchen Carlson (Nicole Kidman), apresentadora de um telejornal que tenta imprimir tendências feministas e humanistas no seu programa, o que causa a ira de Ailes (e lembremos aqui do viés extremamente conservador adotado pela Fox News). A partir do embate entre eles, emergem as agressões e abusos que ele lhe infringiu no passado. Ela toma a iniciativa de denunciar publicamente o magnata, o que logo provoca uma reação em cadeia.

Enquanto isso, acompanhamos também o trabalho de uma jornalista muito competente, Megyn Kelly (Charlize Thheron), apresentadora de outro telejornal da emissora, que lida com a lealdade a Ailes, mas também guarda seus segredos e não está disposta a servir aos desmandos e desejos dos homens de poder. Há ainda a jovem e inexperiente Kayla Pospisil (uma personagem fictícia) vivida por Margot Robbie, ávida por ascender na carreira e que acaba caindo nos jogos de manipulação de Ailes.

O Escândalo segue uma estrutura de espreita de bastidores, como se simulasse uma matéria jornalística investigativa. Busca dar credibilidade a seu trabalho de reconstituição dos fatos utilizando muitas imagens de arquivo, além de uma caracterização mais próxima da realidade de todos os personagens principais (Theron está irreconhecível sob pesada maquiagem). É o tipo de crédito que se busca manter num caso tão delicado como esse, ainda mais sendo tão recente (as denúncias começaram em 2016, apesar dos casos de assédio remontarem há muito tempo atrás).

Ponto cego

Ainda que seu maior mérito seja o interesse em revirar do avesso os detalhes dessa história focando no trio de jornalistas, O Escândalo tenta criar um caleidoscópio de informações e desdobramentos, mas muitos deles são expostos de modo confuso e mal resolvidos dentro da trama, muitas vezes apressadamente.

Charles Randolph, o roteirista, é o mesmo que escreveu A Grande Aposta, de Adam McKay. Não à toa, O Escândalo tenta imprimir o mesmo ritmo de thriller político ágil que McKay usa em seus filmes (sendo Vice outro exemplo recente, mas sem as espertezas de montagem e certa pretensão de humor dentro do campo político). Certamente que aqui não há espaço para a comédia, e Roach apenas dá vazão ao jogo de manipulação, traições e fidelidades que se desenham ali.

Além disso, o filme acaba se refugiando nos estereótipos e nas facilidades de representação mais simplistas a fim de ilustrar um cenário sexista que chega a um extremo (os velhos homens brutalizados e misóginos, as jornalistas corajosas e dispostas a defender a causa, elevadas à categoria de heroínas).

De fato, há uma coragem na postura dessas mulheres em enfrentar um sistema que não lhes é, de nenhuma forma, favorável, mas o filme parece se contentar com esse cenário que parece tão propício para reafirmar a luta das “minorias”. Na facilidade de transparecer as coisas, não consegue observar os pontos cegos e dar mais vazão às contradições dos personagens.

O maior trunfo do filme, no entanto, é seu time de atrizes, Theron em especial (indicada ao Oscar na categoria principal, acompanhada de Robbie, como coadjuvante). Megyn Kelly, aliás, é a grande personagem do filme, questionadora e a que ganha mais complexidades e camadas no roteiro. Se o filme carrega um tom de denúncia muito panfletário, é ela quem melhor consegue visualizar a questão de forma mais realista, mesmo estando do lado feminino, porém precisa dividir o espaço com outras tramas emaranhadas no mesmo caso – a personagem de Robbie apenas funciona como a garota ingênua que cai na lábia do homem mau.

De qualquer forma, o filme não esconde suas intenções de apertar a ferida da masculinidade tóxica e encontra espaço até mesmo para expor o comportamento agressivo e assumidamente misógino do então candidato à presidência da república dos Estados Unidos, Donald Trump (suas declarações ignóbeis estão às claras, especialmente na sua conta no Twitter).

O Escândalo assume, portanto esse lugar de porta-voz da causa feminina, reforçando a necessidade da denúncia e a luta constante contra casos como esse. A ideia de sororidade que se reforçou a partir do #MeToo ganha uma espécie de representação fílmica aqui, ainda que se trate de uma cumplicidade não tão explícita entre as personagens do filme. Uma pena que muito dos detalhes e nuances da trama se dilua na tentativa de conferir maior dinâmica ao longa.

O Escândalo (Bombshell, EUA/Canadá, 2019)
Direção: Jay Roach
Roteiro: Charles Randolph

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 19/01/2020)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos