Todo o hype em cima de O Irlandês talvez sugerisse uma obra explosiva e portentosa, um grande comeback de Martin Scorsese ao universo que lhe rendeu glórias no passado. O diretor volta ao filme de máfia, bancado pela cada vez mais poderosa Netflix, liberdade total de criação e duração, orçamento robusto, além do big team: Robert De Niro, Al Patino, Joe Pesci e Harvey Keitel juntos numa mesma obra, eles que, a exceção de Patino, tiveram grandes momentos de imortalidade nas telas pelas mãos de Scorsese. Tudo parecia apontar para uma grande celebração, mas era preciso contar com o desejo pretensioso do diretor.
Mais sóbrio do que nunca, no entanto, Scorsese prefere fazer grande cinema a um mero espetáculo – apesar de que um filme de 3h30, feito para a TV, com lançamento anterior em poucas salas de cinema, não deixa de ter um caráter de evento cinematográfico, para fechar um ótimo ano de grandes estreias comerciais. Encontramos em O Irlandês um filme de total desglamourização da máfia, sub-gênero que se moldou e se popularizou no cinema norte-americano. É uma escolha madura que entende o gesto de deixar para as décadas de 1970 e 1980 um tipo de representação da máfia que pertence àquele tempo, àquele cinema, e não parece encontrar mais lugar no mundo (e no cinema) contemporâneo dominado por certo cinismo, certo desmascaramento das idealizações, mesmo que a trama se passe justamente entre aquelas décadas.
Curioso observar que um filme como o recente Coringa, de Todd Phillips, atualize tão bem as alegorias de um mítico personagem dos quadrinhos usando uma roupagem bastante devedora de uma estética “scorseseana” setentista; e daí me vem o Scorsese, voltando para o filme de máfia, mas evitando qualquer saudosismo dentro da zona de conforto de um cinema que lhe é muito associado. Ao contrário, o filme pode até reavivar as boas intrigas entre os clãs de homens imperdoáveis e corruptíveis, mas possui um traço de melancolia inerente que acentua vivamente as entranhas inescrupulosas da América e mesmo a falência desse projeto de negócios – ou eles apenas mudaram de “ramo”.
Mas há um preço a se pagar nesse gesto de abandono do idealismo portentoso do universo da máfia: a elaboração de tramas um tanto costumeiras dentro dessa lógica da ascensão do mafioso – passa pela soberania do dinheiro, as dívidas, traições, alianças, esquemas e redes de confiança que rondam o dia a dia dos negócios escusos. Isso tudo está lá no filme, com certa particularidade, mas sem grandes novidades, temáticas ou narrativas – o Frank Sheeran de De Niro nada mais é do que esse homem que adentra a bolha dos desmandos do crime, controlada por poderosos da máfia italiana que operam nos Estados Unidos, e ali se estabelece, menos como todo-poderoso e mais como fiel escudeiro. No entanto, estamos falando de um cineasta de competência inquestionável, há muito maduro, ainda sóbrio e pungente, que não caiu na tentação dos excessos. O Irlandês, ao contrário, é um filme que entende a necessidade de recuar, de não ter de se apegar a pretensões narrativas, de nunca querer ser maior do que tem de ser – para com isso ser grande cinema.
Além disso, o filme é de uma fluidez narrativa impressionante. Não se espera menos de um time em plena forma. Thelma Schoonmaker continua sendo a montadora braço direito do cineasta, entendendo como ninguém a precisão dos cortes. Al Patino surge em personagem inusitado, em certa medida bonachão e intransigente, equilibrando o destemor e as fragilidades de quem se mete em assuntos por demais perigosos; mas é Robert De Niro o dono absoluto do filme, também sóbrio na construção desse homem que aprendeu a ser um monumento de servidão e lealdade – a consistência de sua postura vai conferir um peso incrível para o desfecho do filme. O roteiro é escrito por um veterano, Steven Zaillian (responsável por A Lista de Schindler, do Spielberg), adaptado do livro homônimo de Charles Brandt.
Apesar do feliz encontro pelo conjunto de esforços, a grande força de O Irlandês, esse misto de sobriedade e melancolia, só se instaura mesmo na última hora final do longa, impecável no que possui de precisão e minimalismo. Incrível pensar que aí o filme ganha outro ritmo, mais cadenciado pelas tensões inevitáveis que se apresentam aos personagens, um gesto super arriscado num produto de já tão longa duração. E mesmo assim ele se sustenta fortemente, sem temer a extensão do tempo. É aqui que Scorsese lança seu olhar mais agudo para o que de mais destrutivo pode acontecer a quem cruza o caminho do poder – à família, sobretudo, e a quem decidimos chamar de família.
No fundo, o filme é um grande estudo sobre a lealdade àquilo ou a quem escolhemos como parceiros de luta – independente dos juízos de valor sobre os lados escolhidos. O peso a se sentir e que reverbera no longa é o das escolhas de vida, superior, por exemplo, ao fim trágico dos personagens, ilustrado no conjunto de mortes que se prenunciam num filme como esse – a maioria delas são inscritas em letreiros quando alguns deles são apenas apresentados na trama. O destino é cruel e o tempo não perdoa.
Não perdoa mesmo. A tecnologia de “rejuvenescimento” facial usada no filme impressiona pela qualidade visual. As versões mais novas de De Niro e Al Patino são realmente convincentes. Mas inevitavelmente a técnica se trai: o rosto é jovem, mas os corpos não são. Os movimentos dos atores ainda continuam limitados, mais lentos e compassados porque pertencem a senhores de setenta e poucos anos, e isso provoca um leve estranhamento na fruição – o pode ser desvanecido no decorrer do filme. Ainda assim, é algo notável: o rosto, por mais juvenil que seja, não esconde as fragilidades do corpo, as marcas do tempo. É certo que isso não é uma escolha conceitual do filme, mas é possível superinterpretar tal opção como mais uma camada narrativa: são as fragilidades que emanam dos corpos as mesmas que Scorsese aponta como inerentes das próprias instituições, a máfia, o patriarcado, a família; e sobretudo o coração da América.
O Irlandês (The Irishman, EUA, 2019)
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Steven Zaillian