O Pai da Rita / Entrevista com Joel Zito Araújo

A cor do samba*

Amigos inseparáveis, na desavença e na boemia, Pudim (Ailton Graça) e Roque (Wilson Rabelo) são velhos sambistas da Vai-Vai, tradicional escola de samba paulista radicada no bairro do Bexiga, onde moram. Ali são conhecidos de todos e desfrutam da alta boemia que o lugar oferece, com simpatia e graça, apesar de viverem sempre no aperto – e com o sonho de, mais uma vez, comporem o samba-enredo oficial da escola de samba do coração.

Recordam com adoração o amor que ambos dividiram, há mais de 20 anos, com a bela passista Rita, de quem ninguém mais conhece o paradeiro. Mas eis que a filha dela aparece na região a fim de descobrir quem é o seu verdadeiro pai, tendo Roque e Pudim como principais “suspeitos”. Agora, os amigos se estranham porque ambos requerem para si o papel de pai, mesmo que ausentes por tanto tempo.

O Pai da Rita é esse retorno do cineasta Joel Zito Araújo à ficção depois de ter lançado Filhas do Vento em 2004. Mesmo com a distância, são filmes que se contrapõem: “Essa história surgiu um pouco depois de Filhas do Vento, que é um filme de redenção feminina, muito centrado na história de mulheres; e eu fiquei com o desejo de fazer um filme sobre masculinidade negra e uma reflexão sobre o problema da paternidade que é forte no Brasil”, revela o cineasta, em conversa com A TARDE sobre o lançamento.

O filme encerrou o Panorama Internacional Coisa de Cinema ano passado, tendo a presença do próprio cineasta para conversar com o público sobre o filme. Agora, o longa ao circuito comercial, reavivando o espírito boêmio do samba e colocando em questão o lugar da paternidade e da reconstrução dos laços familiares.

“Nesse filme eu retomo a temática da redenção, trabalhando isso na chave da comédia. Mas não para discutir a dificuldade da paternidade e, sim, a briga pela paternidade. Essa inversão que eu faço é no sentido da redenção dos personagens”, explica Joel Zito. O filme traz isso não apenas nos dois personagens principais, mas em outros, como na relação entre Tia Neguita (a grande Léa Garcia), a prostituta Neide (Elisa Lucinda) e a jovem Gracinha (Nathália Ernesto).

Tia Neguita, aliás, é uma personagem fundamental do filme, uma vez que, sagaz observadora, é ela quem busca reatar esses laços perdidos, usando ora da doçura, ora da dureza, para tensionar as relações entre os personagens – e colocando ela mesma também como parte desse jogo de reconciliações.

Era também um desejo do diretor retratar isso de modo mais irreverente: “Diante de um problema que nós temos (o da ausência paterna em muitos lares), eu queria que o filme fosse uma espécie de bálsamo para as pessoas que vivenciam isso. Quando se fala hoje sobre o orgulho do povo negro, sobre a afirmação negra, a gente está trabalhando em um esforço de reconstrução, e a temática da redenção tem muito a ver com o assunto”, pontua.

Sentido de comunidade

Nesse meio tempo de lançamento entre os dois longas – quase 20 anos –, enquanto desenvolvia o roteiro de O Pai da Rita, Joel Zito dirigiu diversos trabalhos documentais, muito engajado na discussão de temas ligados à negritude (A Negação do Brasil, por exemplo, é já um clássico a questionar a representação do negro na telenovela brasileira ao longo do tempo).

A experiência de Joel Zito Araújo no documentário é bem perceptível em O Pai da Rita. O diretor faz um retrato muito carinhoso e integrado do Bexiga e dos tipos humanos que trafegam e vivem no local. “Eu fui um morador de São Paulo por 17 anos e gostava muito de ir naqueles ensaios que a Vai-Vai fazia ali no centro do Bexiga todo domingo à tarde”, relembra o diretor.

Algumas cenas do filme têm essa marca muito forte, como a sequência da missa afro, celebrada na Paróquia Nossa Senhora Achiropita. “Aquela missa existe de verdade. Naquele dia, eu esperei a missa real acontecer e depois, com apoio do Frei Davi e da comunidade local, pedi que eles permanecessem na Igreja pra gente fazer as cenas ficcionais. É uma encenação do real”, revela Joel Zito.

O filme cria, de fato, um real sentido de comunidade e integração naquele ambiente, a despeito dos conflitos pessoais e particulares de cada um. Mas mesmo na desavença, os personagens permanecem unidos – Roque e Pudim não se desgrudam. Sobre isso, Joel Zito observa: “Embora a comunidade negra seja a maioria no Brasil, o racismo provoca em todos nós um comportamento diaspórico, mas também um sentimento de comunidade muito forte. De ter os nossos espaços, de autovalorização, de elevar a autoestima, de valorizar o nosso pertencimento à África, à nossa origem africana, algo desvalorizado nacionalmente”.

A culpa é do Chico

E eis que num filme tão paulista, a presença de Chico Buarque paira como influência curiosa. Não só porque a sua música, “A Rita”, é uma influência para o diretor, mas também porque em certo momento se discute que Ritinha talvez seja filha de Chico Buarque, já que sua mãe também se relacionou com o músico carioca.

“A brincadeira com o Chico Buarque surgiu no momento inicial de escrita do roteiro. Na disputa de dois homens negros pela paternidade da jovem, pode ser que não sejam eles o pai”, afirma Joel Zito. Aqui, o filme faz essa jogada para colocar em questão a miscigenação do povo brasileiro e, ainda, crescer o mistério de quem é o pai da Rita.

Aliás, o tal conflito do filme só se afirma mesmo da metade em diante do longa. Antes disso, Joel Zito está mais interessado na construção desse universo particular em torno do Bexiga, no desenho dos personagens, e só depois se mira na discussão da paternidade de fato.

“O Vinicius de Moraes fez aquela sacanagem dizendo que São Paulo era o túmulo do samba, e o filme se contrapõe a essa brincadeira maldosa do Vinícius”, pontua, com graça, Joel Zito. A paternidade do samba – se ele nasceu no Rio de Janeiro ou aqui na Bahia – poderia também ser tema de discussão. Mas o fato é que O Pai da Rita celebra mesmo é a verdadeira cor do samba.

O Pai da Rita (Brasil, 2021)
Direção: Joel Zito Araújo
Roteiro: Joel Zito Araújo e Di Moretti

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 22/05/2022)

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