Você tem fome de quê?*
Imagine acordar dentro de uma prisão vertical formada por salas de diferentes níveis; em cada cela somente duas pessoas. Uma espécie de elevador central desce do primeiro andar, no alto, até o mais baixo dos níveis, com uma mesa recheada de comida, como um banquete posto. Mas você só pode comer enquanto a plataforma com comida está no seu andar; logo ela descerá para o próximo.
Esse é o mote central de O Poço, estreia recente no catálogo da Netflix Brasil. É o primeiro longa-metragem do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, de origem basca, que já aposta num cinema que se quer alegórico e pouco dado a explicações fáceis e certeiras.
Não é surpresa para ninguém que à medida que a plataforma com comida desce, os alimentos vão ficando cada vez mais escassos. Se os de cima comem tudo de uma vez, o que sobra para as pessoas dos andares mais baixos? Outra das regras que fazem parte desse “esquema de rodízio bizarro” é que, depois de alguns dias, as pessoas são trocadas de níveis. Então aqueles que ficam nos andares superiores em algum momento também serão obrigados a trocar de lugar e passar a receber os restos – se muito – dos alimentos nos pisos mais abaixo.
Quem nos guia por essa verdadeira descida aos infernos, em clima de uma estranha e organizada distopia, apesar de calcado em algo muito real, é o jovem Goreng (Ivan Massagué). Assim como a maioria das pessoas ali dentro, ele aceitou fazer parte do “experimento”, mas sem saber a natureza da provação e os desafios que lhe aguardavam.
Acompanhado de um livro (cada pessoa podia escolher um bem pessoal para levar consigo) – Dom Quixote –, Goreng assume uma postura mais racional e mesmo diplomática, embora logo irá perceber que os instintos animalescos das pessoas não demoram a dar as caras. Diante da loucura quixotesca, não basta o estoicismo de Sancho Pança.
O Poço é também um filme sanguinário e grotesco uma vez que a ideia de sobrevivência por conta de uma necessidade básica do ser humano – a alimentação – é posta em suspensão. E as pessoas são capazes das maiores atrocidades quando o assunto é sobrevivência a qualquer custo, e o mais vital é pensar em si mesmas antes de tudo. Comer mais e o mais rápido possível torna-se imprescindível.
Fundo do poço
O Poço é dessas obras abertas a muitas interpretações e possibilidades de leitura. Nunca sabemos quem é o responsável pela plataforma, quem o administra ou quais as suas reais motivações – para além do sadismo.
Certamente que as noções de estratificação social e privilégio aos acessos a bens de consumo são os comentários que logo se destacam. O filme parece apontar também para a reflexão sobre o humanismo – ou a falta dele – ao colocar em discussão uma possível cooperação entre as pessoas presas ali em contraponto ao individualismo que parece reinar no cotidiano de sobrevivência de cada um.
No entanto, o grande problema nesse esquema de alegoria social que o filme parece se filiar está na carência de uma trama que sustente tais motivações. Ao se propor a interpretações tão abertas e sem um foco definido, O Poço acaba se tornando muito frágil nas suas intenções fabulares e passa como mais um filme de momentos fortes e desagradáveis.
É um tanto diferente de um filme com o mesmo tipo de proposta, mas mais agradável na sua condução, como Cubo, longa de Vincenzo Natali que fez certo sucesso dentre os amantes da ficção científica no final dos anos 1990. Ali um grupo de pessoas se via confinadas dentro de um labirinto formado por cubos que se comunicavam por portas em cada um dos seus seis lados, como grandes salas interligadas; algumas dessas salas, no entanto, possuíam armadilhas mortais, e as pessoas que se viam confinadas ali precisam escapar das emboscadas e escolher os cubos mais seguros.
A maior diferença desta obra em relação ao filme espanhol é que O Poço tenta fazer uma série de reflexões maiores, mais sérias, porém se dedica tanto a não deixar claras as suas intenções – e possui aquele tipo de final em aberto que certamente desagradará a muitas pessoas – que o conjunto da obra se torna frouxo, querendo ganhar o espectador pela experiência de “dar nó na cabeça”.
O filme se leva muito a sério nesse sentido e se preocupa muito pouco com a agradabilidade da situação e do desdobrar das situações, dentro das possibilidades narrativas do sci-fi, apesar de alguns personagens cativantes – como a atendente do próprio serviço que resolveu, ela mesma, participar da experiência e passa a tentar convencer as pessoas de que se todos comesses apenas o suficiente, sobraria comida para todo mundo.
Uma outra personagem secundária ganha certo destaque na trama – uma mulher misteriosa e totalmente agressiva que, supostamente, está em busca de um filho pequeno perdido em algum lugar no poço. Ela enfrenta qualquer um que cruze seu caminho e atrapalhe sua busca, com uma faca mortal em mãos. Goreng acaba se afeiçoando ao destemor dessa mulher – algo sem grande justificativa na trama – apenas para que o filme caminhe para uma rota de redenção ao final, muito discutível, por sinal.
Em tempos de isolamento social e quarentena, O Poço retrata um tipo de confinamento, mas com resultados muito mais drásticos. Põe na centralidade da sua trama, e também da cena, a comida como reflexo da necessidade humana. Se a pergunta direta a isso – e, portanto, alegórica – mais pertinente a se fazer é “você tem fome de quê?”, a resposta passa por uma outra provação: do que você seria capaz para não se privar daquilo que tanto necessita?
O Poço (El Hoyo, Espanha, 2019)
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: David Desola e Pedro Rivero
*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 05/04/2020)