São Paulo é mesmo um precipício, parece nos querer dizer A Cidade dos Abismos. Há um em cada esquina, especialmente nas ruelas escuras da periferia da cidade. O longa-metragem de estreia da dupla Priscyla Bettim e Renato Coelho mergulha em um underground forjado com muita imaginação, mas também com um senso de palpabilidade muito reconhecível. É um filme com algo de sensorial, por vezes onírico, mas também conectado com uma crueza muito sólida.
O submundo paulista se redesenha na película suja e ultragranulada com que os diretores filmam e criam um universo perto da decadência, mas muito vivaz, apesar da violência que espreita a todo instante. A Cidades dos Abismos lida com essas dualidades, com contradições que disputam espaço na tela. O filme oferece possibilidades visuais muito ricas para retratar esse ambiente, indo do sonho ao pesadelo, sem rede de segurança. Ao mesmo tempo, ele não se encanta por essas possibilidades a ponto de se perder nelas, movimento muito comum em filmes que se abrem para a invenção e o fabular.
O longa sabe muito bem a hora de voltar ao rés do chão, até porque uma mulher trans foi assassinada inesperadamente no banheiro de um bar por um total desconhecido. Sua amiga Glória (Verónica Valenttino), também trans, que a acompanhava, não percebeu o menor sinal da iminência do ocorrido, apenas quando a encontrou agonizante no chão empapado de sangue. Naquele bar, ela encontra Bia (Carolina Castanho), uma jovem solitária, e faz amizade também com o dono do local, o refugiado nigeriano Kakule (Guylain Mukendi).
O subtexto do filme, portanto, aponta para algo da ordem da realidade e da crueldade nas quebradas da cidade, tanto em relação às opressões e violências praticadas contra a população trans e travesti no Brasil, quanto à necessidade de união e solidariedade que os personagens entendem rapidamente ser salutar. Todos eles buscam refúgio entre si nessa cidade de bueiros e valas abertas, e com isso o filme elabora uma trajetória que mistura luto e resistência, na medida em que eles também tentam descobrir o responsável pelo assassinato de Maya (Sofia Riccardi).
A Cidade dos Abismos passeia com muita liberdade por uma cadeia de registros experimentais e aproveita também para flertar com os gêneros (marcadamente o filme policial e o musical). É certo que a primeira metade do filme é mais feliz na elaboração visual, com seus lampejos de criatividade, coisa que não necessariamente se perde ao fim. Não pela forma, mas mais pelo conteúdo, na medida em que a busca dos personagens resulta apenas em sua solidão, a reforçar o estado geral de apatia e desesperança diante das violências do mundo. Mais uma vez, não se trata de algo fora da realidade – ainda mais se pensarmos nos últimos anos de Brasil –, mas a escolha pelo desalento resulta num caminho que já estava estabelecido desde o início do longa. O que resta mesmo é tentar desviar dos muitos precipícios que insistem em compor o terreno das cidades.
A Cidade dos Abismos (Brasil, 2021)
Direção: Priscyla Bettim e Renato Coelho
Roteiro: Priscyla Bettim