Olhar de Cinema: A Noite Amarela

Se o cinema de horror no Brasil vive uma de suas fases mais frutíferas – inclusive em termos de variedade dentro do gênero, indo do terror clássico ao mais conceitual, passando também pelo trash –, é de se esperar que as marcas do horror sejam também chacoalhadas em seus termos. Talvez essa seja a principal filosofia por trás de A Noite Amarela, filme de Ramon Porto Mota, nome intimamente ligado à produção de cinema do gênero. Um dos sócios da produtora Vermelho Profundo, sediada em Campina Grande, na Paraíba, Ramon é um dos diretores do filme coletivo O Nó do Diabo, competição do Festival de Brasília em 2017.

Para eles lidar com cinema de gênero já é deslocar um tanto as narrativas construídas historicamente através de características particulares e já reconhecíveis pelo público – vindos de um pólo descentralizado de cinema (interior do Nordeste), nada mais pertinente. Em seu primeiro longa assinando a direção sozinho, Ramon continua imbuído desse intuito, e A Noite Amarela não é, de fato, um filme de fácil adesão. O longa transparece uma tentativa muito aguda de fugir de clichês e lugares-comuns dentro de um subgênero muito conhecido e pouco praticado no cinema brasileiro: o terror teen.

Adolescentes reunidos, geralmente sozinhos em um determinado local, lidando com ameaças assustadoras e desconhecidas, sempre foram atrativas e matéria-prima no cinema de gênero norte-americano. Neste caso, um grupo de jovens amigos de colégio vão para a casa de praia dos avôs de um deles e lá experienciam esse mesmo conjunto de estranhos acontecimentos da ordem do sobrenatural. A diferença aqui, e propósito claro do filme, é que A Noite Amarela investe em um labirinto de situações que se querem medonhas, sem saídas e/ou nenhuma explicação – nem do que gera nem do que é resultado do horror –, sem com isso solidificar qualquer caminho que perpasse por tal.

O filme apresenta uma série de pistas que poderiam sugerir rotas ou linhas de raciocínio a serem seguidas – as visões de um buraco negro, um monumento de estátua em praça pública com a mão quebrada, um quarto misterioso e de força atrativa, fitas VHS encontradas num porão que revelam um patriarca outrora envolvido em estranhos experimentos sobre fotografia quântica –, enfim, muitas possibilidades que o filme vai abandonando pelo caminho, uma a uma, com a mesma facilidade com que as apresenta.

Acaba soando anticlimático ao sempre abortar uma possibilidade do filme crescer em torno daquilo que ele mesmo sugere (dentro de fora de campo) como possibilidade de horror. No fim, ele não se decide nem em ir para o lugar seguro, nem busca construir algo que seja em alguma medida desconcertante, como fazem os bons filmes de horror – mesmo aqueles calcados na narrativa clássica. A escolha é por ficar no campo do abstrato, assim como seus personagens diante do desconhecido, estupefatos, perplexos, o semblante de medo estampado no rosto. O horror se faz presente como estado inerente, inescapável, e não como acontecimento desencadeado pela chegada dos jovens àquele local.

Seria muito salutar se fiar nessa proposta de desconstrução parcial do gênero. O problema é que o filme, nesse intuito de desviar dos clichês, não consegue construir nada para além da esperteza de romper expectativas, nada mais propositivo a não ser criar uma tal atmosfera que é tão pertinente ao gênero, mas que está sempre a serviço de algo mais. Em certo momento do longa, uma personagem desaparece, instalando preocupação geral. Mas até aí já foram tantas pistas abandonadas, tantas possibilidades desviadas, que o filme consegue banalizar a noção de perigo, e a consequência mais imediata disso é a de não nos importarmos mais com os personagens. Aquilo que provoca o terror neles é tão abstrato, tão pouco traduzido pelo filme, que o efeito no espectador pode ser o de muita coisa, menos o de medo, apreensão e suspensão.

É uma pena porque o filme tem um interesse latente em apresentar certa vivacidade de uma juventude paraibana, o que inscreve o filme em um contexto muito localizado e brasileiro – os sotaques, as expressões usadas e as referências locais aproximam o filme de uma experiência particular de estar no mundo – o seu mundo(inho). Há um longo flashback no meio da trama que oferece essa energia rebelde, afrontosa, uma sensação de infinitude tão associada à juventude – mesmo com a conversa de um deles sobre o desejo de como quer ser tratado depois de morto –, por mais que essas cenas pareçam pertencer a outro filme, inclusive no resultado concreto das atuações e do texto, que cai bastante em qualidade  força.

Certamente A Noite Amarela não passa como um filme de horror banal, mas a troco de quê ele promove todas as suas desconstruções, todos os seus escapes? (seria um filme em fuga?). É, de fato, muito corajoso apostar em uma obra tão disruptiva, mas arrisca, junto com isso, um possível gesto de afastamento a partir do momento em que fica claro seu puro jogo de esvaziar as proposições do gênero.

A Noite Amarela (Brasil, 2019)
Direção: Ramon Porto Mota
Roteiro: Ramon Porto Mota e Jhésus Tribuzi

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