Camaronesa radicada na Bélgica, a cineasta Rosine Mbakam tem se dedicado a retratar a vida de mulheres africanas, especialmente do seu país, como imigrantes e refugiadas na Europa. Seu filme anterior, exibido no mesmo Olhar de Cinema, No Salão Jolie, observava o dia a dia de mulheres que tentavam ganhar a vida naquele reduto de amizades e partilha que era o salão de beleza comandado por uma camaronesa que vivia ilegalmente na Bélgica.
No mesmo país, a diretora reencontra sua amiga Delphine, e é a sua história que preenche em absoluto o novo filme. As Preces de Delphine é um retrato, na tradição mesmo dos portraits, em que o quadro intenta descrever (também entender?) figuras humanas. A câmera de Mbakam mira frontalmente a mulher que conta detalhes da sua vida difícil em Camarões, os conflitos com a família, as muitas brigas e desentendimentos, fala de como entrou para a prostituição e de como chegou à Bélgica fugindo de opressões.
É uma personagem fascinante que não se abre para um olhar de comiseração nem busca angariar a benevolência do espectador; seu estilo de fala é direto e desafiador, tal qual seu comportamento, o que não a privou de violências e cicatrizes colecionadas ao longo dos anos – ainda em África, por certos motivos, e sendo uma mulher negra imigrante na Bélgica, por outras razões que se somam.
Até mesmo na forma como interage com a própria cineasta, sua amiga, Delphine transparece um modo um tanto brusco de responder, embora esteja se doando ali. De sua parte, Mbakam compreende facilmente este lugar e postura (talvez por buscar exatamente isso ou por gostar dessa imagem de mulher forte na tela) e nunca contesta a amiga, antes permite que suas memórias e confissões desaguem à medida em que Delphine se sente cada vez mais à vontade com a câmera.
Nesse sentido, é possível fazer um paralelo com o filme nigerino Zinder, da cineasta Aïcha Macky, que também se vale da proximidade da diretora com os personagens do filme para acessar depoimentos e lugares que exigem certa intimidade e negociação na relação com a câmera – acima de tudo, os personagens precisam saber dialogar com o dispositivo cinematográfico. No caso do filme de Mbakam, tal interação transparece melhor no resultado final porque, na estrutura muito rígida que a diretora escolhe (uma câmera com poucos enquadramentos diferentes e uma longa disposição para ouvir os depoimentos montados em blocos), ela consegue sustentar até o fim a força da fala e a presença de Delphine diante da câmera, com muita segurança e até com uma aparente naturalidade.
E isso é muito importante para que a diretora consiga não apenas extrair um material muito rico e vivaz dali – ainda que passeie pela opressão e por toda sorte de enfrentamentos nada agradáveis que a moça viveu –, mas também para que se permita até mesmo a contrapor camadas muito mais complexas e mesmo contraditórias sobre o que já tínhamos visto antes, algo que passa pela fragilidade, pela expiação e pela declaração de culpa, sem que isso desmereça a personagem. Há uma cena perto do fim que eleva bastante a experiência do filme (e que explica o próprio título da obra), momento em que se justapõem tais camadas, elevando o que já era potente antes disso. Rezar é uma forma de confidência.
As Preces de Delphine (Les Prières de Delphine, Camarões/Bélgica, 2021)
Direção: Rosine Mbakam
Roteiro: Rosine Mbakam