Olhar de Cinema (curtinhas): Capitu e o Capítulo / Recordação / Carro Rei

Capitu e o Capítulo

Nada mais saboroso do que uma adaptação de um clássico de Machado de Assis pelas mãos de um inventor de formas como o Bressane, num momento muito frutífero e luminoso de sua carreira. É muito fácil entender que um filme do diretor nunca seria uma adaptação fiel do que quer que seja, mas é interessante pensar em Capitu e o Capítulo como tributário de um enredo e de personagens icônicos que o Bressane manipula aqui a dar-lhes uma vida e uma disposição outra, não mais vivaz do que na obra machadiana, apenas em um outro tom, mais farsesco e atrevido, além daquela postura e impostação barrocas, preservando porém a natureza dos seus personagens. Capitu continua dúbia e abusada, Bentinho segue vacilante, Escobar se faz de desentendido na sua esperteza; a Sancha de Djin Sganzerla é a que mais surpreende como essa femme fatale a conquistar seu espaço (as mulheres no filme são assumidamente panteras). Há até mesmo uma representação do próprio Machado como narrador inscrito no filme a dar o tom da coisa toda. Apesar dos excertos de outras obras do Bressane a pontuar na montagem do filme e das cenas pós-crédito, Capitu e o Capítulo é menos um metafilme, direção para onde apontam muitos dos trabalhos recentes do diretor, e parece mais preocupado no jogo de cena dos possíveis, entre o clássico e o moderno atualizado.

Capitu e o Capítulo (Brasil, 2021)
Direção: Júlio Bressane
Roteiro: Júlio Bressane e Rosa Dias


Recordação

Paisagem registrada em diversos filmes de períodos vários, a antiga cidade de Jaffa é uma presença constante na obra de Aljafari, especialmente por seu lugar de resistência do povo palestino que luta contra o cada vez mais brutal esmagamento de sua cultura e de seu espaço de vivência. O filme resgata as muitas imagens do lugar – hoje incorporada à megalópole judaica Tel-Aviv, quase como uma periferia, um bairro acoplado – registradas em velhos filmes a partir de uma rememoração muda, sem esforços interpretativos, apenas deixando que as imagens falem por si mesmas. Por isso, Recordação é exemplar como síntese, até aquele momento, da obra do cineasta palestino que se dedicou a falar de seu lar, do espaço de pertencimento do seu povo diante da violência e opressão rasteira dos poderosos vizinhos. Os demais longas, O Telhado e Porto da Memória, ambos usando estratégias distintas entre o documental e a ficção, estão imbuídos do mesmo intuito, reforçando uma paisagem em pedaços que segue abrigando gente, com memória e História, mesmo em ruínas. Por seu dispositivo de colagem, Recordação consegue ser um filme mais coeso e seguro do que os longas anteriores, que perdem um tanto de força na metade final. Mas é quase como se pudessem constituir, em conjunto, um mesmo bloco cinemático sobre o que significa pertencer a um lugar.

Recordação (Istiaada, Palestina, 2015)
Direção: Kamal Aljafari
Roteiro: Kamal Aljafari


Carro Rei

As intenções são das melhores, como sempre nos filmes da diretora pernambucana Renata Pinheiro, mas os resultados podem ser desastrosos, caso de Açúcar (filme dirigido em parceria com Sérgio Oliveira), ou apenas desconjuntados, como em Amor, Plástico e Barulho e também nesse Carro Rei. Ideias mirabolantes envolvem pessoas que falam com carros, automóveis que ganham vida e pensamentos próprios, misturados aqui com crítica social, demandas socioambientais e desejos de sublevação e luta coletiva. O problema não são nem tais elementos amalgamados na narrativa, muito menos o seu excesso (a simbiose homem-máquina sendo levada a vários níveis, sem muito rigor ou precisão), mas a maneira desarranjada e mal estruturada com que eles se sobrepõem uns aos outros. Há, de fato, uma disposição evidente em criar todos esses detalhes, todos os gadgets eletrônicos e os insights criativos que ganham uma dimensão alegórica no subtexto do filme (como a lei que proíbe a circulação de carros velhos), tornando-o um ensaio futurista com o pé no contemporâneo, com desejos de enfrentamento, mas tão encantado por suas possibilidades fantásticas que simplesmente se deixa perder por elas.

Carro Rei (Brasil, 2021)
Direção: Renata Pinheiro
Roteiro: Renata Pinheiro, Sérgio Oliveira e Leo Pyrata

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