Olhar de Cinema: Nós

Para quem dirigiu anteriormente um filme intitulado Casa, não surpreende que Letícia Simões tenha dado continuidade à investigação das noções de lar e pertencimento em seu novo trabalho, que encerra agora a programação do Olhar de Cinema. Com uma estratégia à lá Jogo de Cena, a diretora buscou, via anúncio de jornal, pessoas que não se identificam com a cidade em que nasceram e que queriam falar sobre isso para o filme. Nós reúne alguns indivíduos que, morando em Berlim, “um lugar conhecido por receber estrangeiros que não pertencem a lugar algum”, constroem um mosaico de ideias e reflexões sobre morada e vivência, além de um punhado de outras coisas mais.

A ideia de “nó” (que o filme evoca diretamente ao final) pode estar ligada a uma situação difícil de desatar e que representa uma barreira para o indivíduo – o que, neste caso, gira ao redor da noção de identidade. Mas a leitura também é pelo plural das pessoas que se entendem nesse impasse de entendimento de si mesmo como pertencentes a um dado local de origem, com a força de suas raízes, situação que atingia a cineasta na época em que teve a ideia para o filme e partiu para Berlim em busca de desprender seu nós.

Simões, portanto, se coloca ao lado dessas pessoas que se abrem para ela a partir de origens e trajetórias distintas, cada qual construindo narrativas que levam o filme para espaços e mentalidades outras, a fim de construir um campo de possibilidades para se pensar a territorialidade e de como ela nos atravessa – muitas vezes enxergado no outro reflexos de nós mesmos.

Por essa opção de quase comunhão com um tema e com desdobramentos em comum, Nós é menos um filme de confrontos e tensionamentos e mais um exercício de alteridade cuja maior funcionalidade, para a diretora e para o espectador, é a de tentar se encontrar nas reflexões de cada um dos entrevistados. Simões alia isso a um conjunto de imagens diversas, fotos e gravações, tanto de autoria dela própria como dos seus personagens, a compor um mosaico visual que dê sustentação às falas, nem sempre em consonância direta, mas em alguns casos ampliando a percepção das ideias que ganham forma no filme – como quando a experiência da moradia e vida indígenas é ilustrada na tela e ecoa nas palavras de um dos entrevistados que relembra algumas falas de Ailton Krenak sobre um ideal indígena de relação com a terra onde se vive.

O filme segue um fluxo de pensamentos a partir das intervenções da diretora e dos entrevistados que, apesar de bem cadenciados, seguem rumos muito diversos (ainda que variantes sobre o mesmo tema), muitas vezes com um excesso de ideias nas quais nem sempre é possível se deter com a devida atenção. Um dos depoimentos mais interessantes é mesmo o do cineasta brasileiro Karim Aïnouz, cearense há tempos radicado em Berlim, que fala de como sua relação com a ideia de casa só se cristalizou quando ele se deteve nos vocábulos estrangeiros “house” (estrutura física), “maison” (do francês, também ligado a algo físico) e “home” (ideia de lar como condição de bem-estar, a preferida dele).

A ideia do entendimento sobre o que é esta casa-lar já estava presente no filme anterior da diretora – longa feito em Salvador, cidade onde ela nasceu e que afirma detestar, mas para onde já voltou a morar – e ganha outros desdobramentos aqui, embora a busca ainda persista (para muitos ela nunca termina). Das palavras emprestadas do poeta Mia Couto: “O importante não é a casa onde moramos; mas onde, em nós, a casa mora”.

Nós (Brasil, 2021)
Direção: Letícia Simões
Roteiro: Letícia Simões

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