Olhar de Cinema: O Grande Movimento

O diretor e roteirista boliviano Kiro Russo ganha destaque nesta edição do Olhar de Cinema que exibe seus dois longas-metragens até o momento e seus curtas. É, de fato, um cineasta a se ficar de olho, possui um senso estético apurado, ainda que seus filmes embarquem em certo fetiche pela estilização e não deixem de apresentar certos cacoetes de um cinema latino-americano contemporâneo, especialmente no retrato de personagens e ambientes interioranos e rurais. O Grande Movimento, seu filme mais recente, tem um tanto disso e é uma espécie de continuação do longa anterior, Velho Caveira, dando seguimento à trajetória torta do jovem Elder (Julio César Ticona), um mineiro que chega à capital boliviana e se depara com a cidade grande.

O filme é desde já definido como uma “sinfonia da cidade”, nas palavras do próprio diretor e na maneira como ele passa a ser referido por aí. É o tipo de epíteto que estará facilmente associado ao filme, e com razão, a despeito das imagens iniciais: o caos de La Paz é registrado a partir de uma câmera distanciada (imagens filmadas em 16mm) que busca captar a confusão da urbe, enquanto vai se acercando dos espaços, do labirinto de concreto, naquela confusão caleidoscópica e sonora que se apreende da urbanidade, a ganhar outras nuances a partir dos desdobramentos da trama.

Elder chega com os amigos mineiros que reivindicam atenção e amparo político das instituições, mas isso não será tema do filme – no longa anterior, Elder vivia no campo e começou a trabalhar nas minas depois que seu pai morreu; era também um alcóolatra. Em La Paz, passa a trabalhar numa feira de rua. Assim que chega à capital, o rapaz já começa a se sentir mal, talvez pelo esforço da andança para chegar até ali – já que fizeram o percurso a pé –, talvez pelos poluentes que respirava no trabalho de mineiro. A razão, na verdade, pouco importa porque o que interessa ao diretor é representar a doença e o mal-estar que se intensifica na cidade e esmaga o ser humano.

No entanto, se o filme busca explorar ao máximo a sua composição visual, fazendo escolhas muito curiosas em termos de fotografia e saturação da imagem, a fim de dar conta dessa trajetória incerta e, posteriormente, da enfermidade que se abate sobre o personagem, o filme também se esconde por trás de uma trama que não apenas repete a do filme anterior de Russo, quanto cai no problema da reiteração. Elder está doente – nunca saberemos exatamente de quê –, e o filme todo se arrasta a partir dessa premissa que nem sequer se completa ao fim. Daí que o longa parece depender demais dessa ideia de “sinfonia” criada a partir das experimentações do registro visual, que em muitos casos beira apenas o desenho de um tipo de imagem disruptiva e surpreendente.

Há uma sequência em que isso salta aos olhos de modo mais evidente, envolvendo uma espécie de número musical que irrompe na cena inesperadamente. Pode-se dizer que é quando o filme dá um respiro (a nós e a seus personagens alquebrados), mas soa mais como um capricho de realização e menos como algo a contribuir com o andamento da narrativa, assim como o é a cena do lobo na floresta ou mesmo os momentos em que Elder passa mal e parece acometido de algo da ordem do espiritual ou coisa semelhante, misturando realidade e pesadelo.

Aliás, o filme insere aqui um novo personagem que também cumpre esse papel pelo viés da estranheza. Max (Max Bautista Uchasara) é uma espécie de xamã/curandeiro que ronda pelo ambiente da feira e também pelas matas ao redor da cidade. Boa parte do filme dedica-se a segui-lo por suas andanças, enquanto balbucia palavras aparentemente sem sentido. Ele vai ser importante para o “tratamento” e cuidado de Elder, mas não deixa de representar também a caricatura do velho sábio, meio louco, meio andarilho, que possui dons medicinais e/ou espirituais, fazendo referência a uma ancestralidade ameríndia que ajuda e auxilia os (bons) filhos da terra – e para inserir esse personagem, o filme precisa fugir um pouco do centro urbano e criar outro tipo de “sinfonia”.

Com isso, O Grande Movimento entrega uma experiência sui generis que se quer “sinfônica”, mas também “espetacular”, de alguma forma. Misturam-se muitas coisas aqui, desde o retrato do mal urbano até a precarização do trabalho e do subemprego que reina nas periferias da cidade e do país como um todo. Nenhuma dessas questões, no entanto, é realmente nova e nem mesmo o filme faz esforço para investigá-las mais a fundo a partir do universo que cria. Por baixo da casca estética do filme, há mais fragilidades do que forças, mas também um desejo latente de tecer a imagem e não necessariamente os seus significantes.

O Grande Movimento (El Gran Movimiento, Bolívia/Catar/França/Suíça/Reino Unido, 2022)
Direção: Kiro Russo
Roteiro: Kiro Russo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos