Uma questão logo se coloca ao fim da visualização de O Sonho do Inútil: seria o filme mais feliz pela energia que emana da vontade de fazer cinema (e de fazer diferença na vidas daqueles jovens) ou pela construção de si mesmo enquanto documentário confessional da trajetória de garotos da periferia do Rio de Janeiro que ousaram criar no campo do audiovisual? Não saberia responder de pronto à questão, mas certamente a resposta pendia de uma possibilidade à outra à medida que o filme transcorria. O lugar de destaque que ele ocupa na mostra competitiva do Olhar de Cinema torna a configuração desse pensamento ainda mais interessante.
O filme é um curioso retrato em primeira pessoa, na medida em que o retratado é um pequeno coletivo que, na real, nem está de fato interessado em se constituir como tal, apesar da soma das partes serem sua força motriz (o “inútil” do título está no singular). Jovens que começaram a fazer atrevidos vídeos amadores de humor para a internet antes de isso virar uma commodity dentro das disputas por engajamento e visibilidade no reino das redes sociais contemporâneas. José Marques de Carvalho Jr. assina a direção aqui, mas o filme pertence a um esforço conjunto (como é de praxe do fazer cinema) que ele mira em retrospecto – e por ser, de fato, aquele que levou adiante o interesse mais direcionado ao exercício cinematográfico.
Um dos maiores acertos do filme, nesse apanhado um tanto desordenado (mas compreensível no âmbito da sua natureza desordeira) de se escrever sobre si enxergando o passado, é que o intuito do longa não é vangloriar os feitos do grupo e estufar o peito (muito embora isso seja importante individualmente para eles e para os seus mais próximos, especialmente por virem das áreas periféricas com as ameaças que rondam pela vizinhança do tigre); mas, antes disso, e também com essa finalidade, é preciso olhar para trás para resgatar os indivíduos, e não necessariamente os feitos – estes passam de relance na tela, picotados e descontextualizados, ainda que possam ser situados com certa boa vontade. É na reunião daqueles amigos que agora avaliam o que fizeram (e também o que não conseguiram fazer), em muitos sentidos, com o intuito de antever um futuro, que está a força do filme.
Isso nos faz voltar à questão pontuada no início do texto. O Sonho do Inútil revela, inevitavelmente, uma energia que se visualiza não só nos vídeos que eles realizavam, mas na paixão com que eles falam sobre isso e rememoram (isso acima de tudo, aliás). Mas há uma energia também na costura desse material, na forma de apresentar esse desvio de caminho que eles puderam tomar em determinado momento e, especialmente, na maneira como a trajetória de cada um dos garotos ganha espaço e respiro dentro do longa de forma muito sincera, objetiva, muitas vezes dura e sombria, marcada por pequenas conquistas e derrotas, mas arranjada como uma confissão entre amigos.
Independentemente de onde brota essa energia e de como ela reverbera no filme, como pulsão ou como concretude, faz bem assistir a um longa capaz de olhar para si com orgulho, injetar felicidade pelo trabalho feito e associar esperança (o poder dos sonhos!) a uma juventude periférica no Brasil.
O Sonho do Inútil (Brasil, 2021)
Direção: José Marques de Carvalho Jr.
Roteiro: José Marques de Carvalho Jr.