A Cidade do Futuro (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Cláudio Marques e Marília Hughes
Serra do Ramalho é uma cidade do interior baiano criado pelo militares para abrigar as famílias que foram realocadas de sua terra por conta da criação da barragem de Sobradinho. É ali que Milla, Gilmar e Igor vão formar uma família que curto-circuita certos protótipos instituídos socialmente. Há nessa proposição de A Cidade do Futuro duas dimensões políticas que se entrecruzam: a vida das pessoas marcada pelo peculiar passado de formação da cidade; e a força afetiva que une os personagens na criação de laços mais fortes de convivência.
Há, portanto, uma política dos afetos a confrontar toda uma política social enraizada no interior do sertão, que mesmo com suas repreensões e modos de direcionar costumes e comportamentos não impedem que essas novas configurações floresçam através de uma ordem natural das coisas. Faz muito sentido que seja exatamente em Serra do Ramalho que esse tipo de luta travada pelos personagens ganhe lugar, não como modo de afirmação pré-concebida, mas como forma de acatar a força do desejo dos personagens.
Gilmar e Milla são professores de uma escola secundária, grandes amigos. Ele mantém uma relação escondida com o jovem Igor enquanto ela troca carícias com uma menina, embora não esconda seu desejo por meninos também. Ao aparecer grávida, aparentemente de Gilmar, Milla oferece uma oportunidade para que os três sigam juntos um caminho de companheirismo e fortalecimento de um laço familiar incomum.
É certo que esses caminhos surgem no filme sem grande planejamento, e mesmo a consolidação desse formato de convivência será alinhado e abraçado pelos personagens aos poucos no decorrer da narrativa, não sem suas dúvidas e incertezas, também em confronto com os que o cercam naquele lugar onde os preconceitos são sempre intensificados, enraizados.
Como narrativa, A Cidade do Futuro é mesmo um tanto direto, mais elíptico do que lacunar, o que por vezes o torna inconstante. O enredo desenha um caminho que parece natural e coeso no percurso dos personagens, esse já tortuoso por si só pelas escolhas que eles fazem em face do enfrentamento de códigos tão conservadores. Mesmo assim, o filme não se priva de certos atropelos, como a inclusão das entrevistas com pessoas que relatam a experiência de expulsão de Sobradinho, sendo o tom documental já tão presente durante toda a projeção.
Entre um arco dramático bem desenhado e a necessidade de não parecer nunca calculado, A Cidade do Futuro talvez careça de maior força da surpresa, da pulsão pelas consequências que as atitudes dos personagens provocam, ou mesmo na vitalidade jovial que existe em Depois da Chuva, sendo este novo filme tão combativo enquanto proposta que exige postura afirmativa. É como se o filme estivesse sempre pronto para arriscar, mas se detivesse a todo instante.
Há algo como um entrave ali, uma barreira, que não impede o filme de manter uma coesão estética, mas que não o permite se arriscar mais. E isso encontra eco nas atuações um tanto travadas do elenco, na maneira como os atores buscam refletir na tela sua própria trajetória de vida, ao mesmo tempo em que formatam uma ficção, portanto um espaço como que intermediário de representação, entre o naturalismo e o amadorismo. Na tentativa de encontrar seu lugar de afirmação, A Cidade do Futuro concentra-se no rompimento social, sem que venha acompanhado de um salto formal.
Eles Vieram e Roubaram Sua Alma (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Daniel de Bem
A ideia de um cineasta como coletor de imagens não é necessariamente nova – é possível lembrar de um filme como Os Catadores e Eu, de Agnès Varda, para citar um exemplo que vem de imediato à mente. Para o cineasta gaúcho Daniel de Bem, em seu primeiro longa-metragem, essa proposição vira não só pesquisa de linguagem como também matéria-prima de seu primeiro filme, como que uma autoficção.
Há ali um jovem com sonhos de ser cineasta experimentando com a câmera e buscando captar o máximo de imagens, aleatórias ou não, da vida de pessoas próximas, sem grandes objetivos ou razões estudadas. Essa é a própria proposta a que se arvora Daniel de Bem nesse filme, assim como as imagens que ele(s) produz(em) fazem parte também da tessitura do filme.
São essas camadas que se interligam e interagem em Eles Vieram e Roubaram Sua Alma, e são mesmo muito instigantes enquanto força da pulsão não da imagem em si – que às vezes é mesmo esvaziada, pouco significativa, talvez por sua aleatoriedade, por sua fragmentação ou desimportância mesmo –, mas principalmente pelo gesto de captá-las, encontrá-las e persegui-las, o que significa também perseguir as pessoas que podem lhas oferecer.
O filme é muito curioso enquanto dobra narrativa e metalinguística, porém peca muito em não se sustentar enquanto interesse humano. Nesse sentido, é um filme frio, ainda que nada calculado. É difícil embarcar quando o próprio processo de construção narrativa não mira com clareza em algo concreto. É tão fácil se encantar por certas imagens e personagens que cruzam aquele caminho tanto quanto é desejável que eles sejam mais um possível foco de interesse que pode se concretizar ou não.