Olhar de Cinema: Quando Eu Me Encontrar / Entrevista com Luciana Souza

“Dayane foi embora”. É assim que Marluce (Luciana Souza), junto com sua outra filha, Mariana (Pipa), explica para o namorado da moça (David Santos) o seu sumiço. Pois é simples assim: um dia, Dayane não está mais lá, se foi. Deixou apenas um bilhete dando conta da sua escolha em partir, sem muitas explicações. Apesar do paradeiro dela ser um mistério que intriga os personagens e sua própria figura ainda pairar sobre todos ali como alguém indissociável, Quando Eu Me Encontrar lança uma pergunta que vai em outra direção: como fica quem fica?

Marluce, com seu olhar duro e atravessado, sente pela ausência da filha, mas parece guardar muito de suas mágoas para si. A irmã adolescente vive lá os dilemas da juventude, não tendo mais o apoio da mais velha como amparo e ombro amigo. Já Antônio, o namorado – o nome “Dayane” tatuado no peito –, é o que mais se exaspera com a fuga repentina da amada, demonstrando sua indignação pelo rompimento de uma relação que parecia caminhar para algo mais sólido. Eles (ou talvez ele apenas) já preparavam o enxoval para viverem juntos em uma nova casa. Mas os planos de Dayane mudaram e eles não incluíam aquelas pessoas ali.

O longa cearense, dirigido pela dupla Michelline Helena e Amanda Pontes, movimenta-se com uma cadência muito particular, com certa parcimônia e delicadeza, pelos caminhos da ausência e do abandono. Os personagens sentem e demonstram isso de modos distintos, mas suas vidas não devem parar por conta disso. É nessa toada que a trama do filme faz os personagens se moverem em algumas direções, mesmo que tendo de pegar “no tranco”. Para uns, dura até o final do filme até que eles se deem conta minimamente da necessidade de seguir.

Na medida em que a narrativa retrata esse estado de letargia, o próprio filme acaba se contaminando por isso. Mas o tempo do filme é apenas o tempo das emoções assentarem, e essas ninguém controla. O “desaparecimento” repentino da moça gera menos uma urgência naquelas pessoas e mais uma sensação de falta que se desdobra em outros pontos de apoio que ela pudesse representar para cada um ali. O que interessa ao filme é a maneira como mãe, irmã e namorado reconfiguram o seu papel no mundo sem aquela pessoa até então onipresente (ou talvez só depois de sua partida, que se dão conta da centralidade dela nas suas vidas).

Se Antônio tem um jeito mais expansivo de lidar com a falta e Mari está mais imersa nos seus problemas de adolescente (seus dilemas acabam sendo o elo mais fraco do filme), é a figura da mãe que ganha peso maior. A experiência de uma grande atriz como Luciana Souza faz uma diferença enorme para isso que pode ser desgosto ou resignação (ou as duas coisas juntas). Marluce guarda tanto para si, que é até mesmo difícil desvendar de fato seus sentimentos. Souza trabalha no limite da emoção porque sua personagem está a ponto de transbordar (assim como a trilha sonora também parece beirar o excesso melodramático, porém nunca se entrega a ele), mas ela se contém – a exceção é apenas quando confronta sua própria mãe, fazendo renascer uma série de outras cicatrizes que se espelham no dilema atual com a filha errante.

Esse gestual austero, mas plácido, parcimonioso, que a atriz usa na sua composição condiz totalmente com a economia narrativa que as diretoras empregam em todo o filme. Muito do que não é dito, subtende-se facilmente nas entrelinhas. Entre esconder e mostrar, Quando Eu Me Encontrar é até mais explícito do que possa parecer em uma primeira impressão. O ponto de escape pode estar a um palmo da nossa cara, mas precisa que alguém siga o curso da fuga primeiro para fazer mover as engrenagens da nossa própria vida.

Quando Eu Me Encontrar (Brasil, 2023)
Direção: Michelline Helena e Amanda Pontes
Roteiro: Michelline Helena e Amanda Pontes

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Coprotagonista de Quando Eu Me Encontrar, a atriz baiana Luciana Souza falou da experiência de filmar fora da Bahia e de projetos futuros

Desde que apareceu no elenco de Bacurau (2019), Luciana Souza não tem parado de aparecer nas telas do cinema, embora sua carreira remonta aos anos 1990 através do icônico Bando de Teatro Olodum. Ela já havia feito a icônica religiosa Dona Joana, em Ó Paí, Ó (2007), marcando o seu reconhecimento para o grande público.

O filme está prestes a ganhar uma continuação. Luciana conversou com A Tarde durante sua passagem pelo Olhar de Cinema para mostrar o longa cearense Quando Eu Me Encontrar, de que é coprotagonista. Ela falou sobre o filme e de outros projetos futuros. Confira a entrevista:

Você tem feito muitos filmes fora da Bahia. Como tem sido essa experiência? 

No Ceará, eu fiz antes desse o Amores Paraguayos, de Janaína Marques, que ainda está em processo de montagem. Eu estava fazendo esse filme lá e voltei a Salvador para fazer A Matriarca, de Lula Oliveira. Quando eu estava finalizando esse, recebi o convite para Quando Eu Me Encontrar, justamente por conta de minha experiência anterior no Ceará. As coisas estão interligadas. E eu ainda fiz outro lá, uma participação em Greice, do Leonardo Mouramateus. Eu fiquei impressionada com esse chamado do Ceará.

Como tem sido o processo de filmar fora de sua terra?

Eu sempre recebo os projetos me sentindo muito honrada. É a sensação de que meu trabalho está se expandindo. Em Salvador, as pessoas me reconhecem, mas é difícil trabalhar como ator na nossa cidade. Quando vou para fora, vejo que existem lugares que me querem profissionalmente. Estou aprendendo a me relacionar com isso, a negociar meu trabalho. É também uma forma de me tirar desse lugar de conforto. Entendo como um chamado para povoar outros espaços.

Como foi viver a Marluce nesse filme novo?

É meu processo é de ler o roteiro, entender, ouvir o que as diretoras têm para dizer. Eu tenho entendido que construir uma personagem é estar à disposição das coisas que vão me acontecendo, no set e ao redor da preparação, dos meus sentimentos, é estar aberta. Existem também os sinais, invisíveis. Claro, tem o trabalho técnico, o trabalho de voz e corporal que eu adoro fazer e dos quais eu não abro mão. Mas é preciso estar atenta ao que acontece ao redor. Eu não desenho logo de imediato uma personagem, deixo acontecer porque eu sei que não é do meu domínio total dar essa construção. Ela se faz pelo trabalho em conjunto.

Você conhecia os demais atores?

Não conhecia nenhum dos atores. Só mesmo o pessoal da técnica, da maquiagem, que tinha sido o mesmo de Amores Paraguayos. E foi um processo muito acolhedor. Não senti pressão nenhuma, mas um acolhimento porque é melindroso para todo mundo. Quando eu comecei a fazer cinema, eu pensava: “será que eu estou oferecendo o que as pessoas querem de mim?”. Mas nem todo mundo tem a certeza exata do que é. E a gente que tem de dar alguma coisa para eles dizerem se está bom.

As diretoras falaram de certa doçura que você tem, mas eu vejo no filme um semblante duro, reservado. Marluce guarda para si a angústia. Como foi trabalhar essa postura da personagem?

Quando eu assisti ao filme pela primeira vez, fiquei imaginando essa dureza da personagem. Quando a Marluce recebe a carta da filha logo no início, não seria o caso dela ler a carta e esbravejar? Mas ela segue num silêncio. Essa termina sendo uma marca da história de vida da personagem. É como se ela estivesse impregnada pela própria dureza da vida. Ela vai cobrar da mãe e vemos de onde vem essa reação. Ela tem uma marca histórica de dureza, que se construiu assim e que é a marca de muitas mulheres. É da minha própria mãe, é da minha própria vida, são coisas já conhecidas para mim.

Eu sinto que a sua personagem está a ponto de desabar, no limite da emoção, mas você se segura.

Sim. Tem coisas que não estão ditas, não precisam ser. Eu penso na Joana, de Ó Paí, Ó, que é uma personagem dura, mas que explode, tem um contexto que favorece essa explosão. E aqui não, é o oposto disto. Há uma economia dos gestos, engessada ali, embora a explosão também esteja presente dentro dela.

Falando de Ó Paí, Ó, vocês terminaram as filmagens da continuação no ano passado. Como foi esse reencontro?

Muitas pessoas me perguntam se ainda estamos filmando, mas já acabou. O filme tem sido muito esperado, levamos muito tempo entre um e outro para retomar. Mas ele está vivo de tal forma que as pessoas estão sempre perguntando por ele. Sempre tem essa curiosidade. E o filme está na atualidade, está vivo. O primeiro, de 2007, marcou muito o cinema brasileiro e baiano. E não havia outros atores de fora de Salvador para fazer o filme. Foi muito representativo para a gente, para o Bando e para nossa história, com o que fomos ganhando com toda a repercussão. Estamos na expectativa de ficar pronto ainda no segundo semestre deste ano.

*Entrevista publicada originalmente no jornal A Tarde (edição de 25/06/2023)

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