Quem vê aqueles caras bombadões fazendo exercícios físicos numa espécie de academia improvisada, tirando sarro uns dos outros, exibindo seus músculos e sorrisos marotos para a câmera, não imagina o passado nada glorioso e barra pesada deles. O retrato das gangues de uma cidade do interior do Níger não poderia ser mais desglamourizado e pouco convencional do que esse que faz a diretora Aïcha Macky. Na verdade, ela acompanha ex-integrantes e alguns ainda atuantes membros de gangues que vivem na periferia da cidade nigerina de Zinder, ao sul do país. O letreiro inicial nos informa que aquele lugar era para onde levavam os leprosos e marginalizados da sociedade, sendo os membros das gangues hoje seus descendentes.
Este lugar da marginalidade, no entanto, será posto em questão pelo próprio filme. Zinder acompanha alguns desses sujeitos na sua lida diária, na tentativa de reconstruir a vida com outros trabalhos e ocupações, enquanto oferecem relatos nada agradáveis sobre situações que aconteceram consigo (as histórias das cicatrizes que muitos levam no corpo) e comportamentos violentos que praticaram no passado (um deles fala sobre como violentavam mulheres e é dos depoimentos mais fortes do filme).
Esses “marginais” (mais por estarem às margens da vida social do que por se verem e/ou serem vistos como criminosos) elaboram suas memórias e abrem seu cotidiano com muita naturalidade para a câmera, ainda que se protejam sob o manto da redenção por estarem vivendo um momento outro de vida em que se busca construir uma história fora da criminalidade – mesmo aqueles que são filmados na cadeia e cumprem penas também por delitos que não cometeram, ou assim o dizem.
Talvez este filme só tenha se tornado possível justamente por encontrar tais sujeitos neste ponto de virada que não deixa de ser mais edificante, mas também de mais fácil aproximação. Ajuda muito ainda o fato de a diretora vir daquele mesmo lugar, ter a mesma origem local que aqueles sujeitos. As conversas francas que ela mantém com os personagens e os espaços que ela consegue acessar demonstram muito bem isso.
Por outro lado, surgem muitos dilemas e pontos nos caminhos trilhados por eles que o filme nem sempre consegue desenvolver a contento: a questão do contrabando de gasolina, os casos de violência contra as prostitutas de um outro distrito ali perto e até mesmo as motivações que levaram a uma mudança de pensamento sobre estilos de vida violentos que precisam ser deixados para trás (alguém cita a importância de ONGs nesse processo, outro fala do medo das prisões, mas o filme não aprofunda tais questões).
Numa das entrevistas com um dos homens, a diretora chega a confidenciar certo incômodo pelo fato dela ter vindo daquele mesmo lugar que ele, mas ter tido oportunidades outras que a levaram para outros caminhos de vida – a resposta dele passa pela educação enquanto fator diferencial –, mas nem se elabora muito sobre isso, nem a cineasta volta a registrar esse ou outros incômodos no encontro com tal realidade. Mesmo assim, Zinder é um retrato, em muitos sentidos, bem diverso sobre sair da marginalidade e ainda permanecer à margem.
Zinder (Níger/França/África do Sul/Alemanha, 2021)
Direção: Aïcha Macky