Os Primeiros Soldados

No front contra inimigo invisível*

Na virada do ano 1982 para 1983, alguns personagens se cruzam numa Espírito Santo pacata, ainda que algum mal-estar pareça rondar a vida dessas pessoas. Suzano (Johnny Massaro) acabou de voltar da França, tem um ar melancólico e passa os dias com a sua irmã, Maura (Clara Choveaux), e o sobrinho Muriel (Alex Bonini), por quem nutre grande afeto.

Maura é enfermeira e nesse 31 de dezembro, ao chegar para trabalhar no posto de saúde, encontra Rose (Renata Carvalho) na rua aos berros, acusando os funcionários do local de terem se recusado a atendê-la. Será que é apenas pelo fato dela ser uma travesti? É com esse clima geral que a celebração da passagem do ano ganha um tom de pesar, de algo prestes a desandar.

No fundo, Os Primeiros Soldados trata das ondas iniciais de HIV no Brasil, em um momento em que ainda se sabia muito pouco sobre a doença, sobre seus efeitos e formas de contágio – a palavra Aids nem sequer é dita por alguém no filme. O diretor Rodrigo de Oliveira elege um grupo de amigos que vão sentir as mazelas da doença no corpo e se juntam, de alguma forma, para enfrentar isso juntos.

Ao lado de Suzano e Rose, que já se conheciam de antes dele ir para fora do país, junta-se também Humberto (Vitor Camilo), uma espécie de videomaker que estava fazendo um “exercício audiovisual” sobre Rose e seu trabalho na noite. São personagens que trafegam dentro do mesmo círculo de amizades e universo underground das pessoas LGBTQIA+ – ainda que o estigma sobre a Aids contaminar apenas essa população ser uma inverdade que o filme está longe de querer reforçar.

O longa caracteriza uma Vitória do início dos anos 1980 em que o preconceito era ainda muito maior – a boate Genet era o ponto de encontro deles –, com intimidade e cuidado. É quase como se Oliveira quisesse cercar apenas aquele microcosmo para a narrativa que pretende construir. É um filme que quer ser menos um retrato didático sobre a doença no seu início e mais uma elegia para aqueles que primeiro enfrentaram o vírus, com pouquíssima informação e acolhimento médico e social.

Os Primeiros Soldados faz também um paralelo bastante complementar com o também recente filme Deus Tem Aids, da dupla de diretores Fábio Leal e Gustavo Vinagre. É um documentário que reúne diversas pessoas que falam sobre sua experiência de existência e resistência como soropositivos na atualidade.

Intimismo e melancolia

A chegada da Aids e os primeiros surtos da doença já foram tema de muitos filmes e obras diversas. Daí que Rodrigo de Oliveira elege um recorte muito específico para tratar do assunto, tanto geográfica como temporalmente. Existe uma atmosfera de muito intimismo e afeto com que os personagens são levados a enfrentar aquele calvário.

Rose performa na boate (inclusive naquele réveillon em que já sentia algo estranho no seu corpo) e, pelo menos no seu círculo, é muito querida e reconhecida como “diva da noite” – o que não a impede desse sentir sozinha também; assim como se ensaiam aproximações amorosas (Humberto e seus encontros) e também familiares (a bonita amizade de Suzano com seu sobrinho). Tudo isso, no entanto, esbarra no pesar que paulatinamente toma conta do filme à medida em que a doença pesa mais sobre aqueles indivíduos.

Não dá para fugir do sofrimento que recai sobre eles e, sobretudo, do sentimento de finitude, cada vez mais próximo, enquanto o corpo definha. Mas aqueles três personagens encontram uma maneira de lutar contra a doença – e mesmo de investigá-las juntos. Há até mesmo uma saída pela fabulação, que se dá pelos experimentos em vídeo que eles buscam fazer.

É, portanto, um equilíbrio muito difícil o que Rodrigo de Oliveira consegue aqui: o peso do tema contrapõe-se com a força dos afetos que eles criam ao redor de si – contra todos, contra uma sociedade pouco acolhedora. Essa talvez seja a maior batalha que eles enfrentaram nessa jornada cruel, desoladora, mas inevitavelmente importante para as gerações futuras.

Os Primeiros Soldados (Brasil, 2021)
Direção: Rodrigo de Oliveira
Roteiro: Rodrigo de Oliveira

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 10/07/2022)

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