Panorama Coisa de Cinema – Parte II

Queria não só assistir a mais filmes fora de competição para trazer a discussão sobre eles para o blog (a participação no júri jovem me fez focar muito na Mostra Competitiva Nacional), e também ter mais tempo para escrever sobre o que tenho visto. Mais o tempo é carrasco. Segue alguns abaixo:

Trabalhar Cansa (Idem, Brasil, 2011)
Dir: Juliana Rojas e Marco Dutra

Exibido fora de competição no Panorama Coisa de Cinema, Trabalhar Cansa é um sopro de novidade no cinema nacional se pensarmos na utilização do gênero suspense/terror para a construção de uma narrativa que quer mesmo atingir o comentário social. Encontramos o casal Helena (Helena Albergaria) e Otávio (Marat Descartes) num momento complicado de suas vidas. Ela está fechando a compra de um galpão onde construirá um mini mercado, enquanto ele acaba de ser demitido de seu emprego.

Chama atenção no filme o retrato de uma classe média-média representada por um casal que é empregado e empregador, lutando para garantir sua vaga e permanência no mercado trabalhista, que além de representar a garantia de um padrão de vida, é também fator de dignidade pessoal.

O tom fantasioso entra na história pelo mistério que envolve o estabelecimento e pela atmosfera sombria construída a partir de artifícios emprestados dos filmes de horror: encanamentos apodrecidos que estouram, infiltrações que tomam as paredes, correntes dentadas encontradas nos cantos, portas que batem, barulhos estranhos; uma presa ou garra encontrada no local faz todos coçarem a cabeça.

Essa tensão entre os conflitos que surgem no ambiente de trabalho (Helena tendo que gerir o mercado e lidar com seus funcionários e Otávio passando pelas entrevistas de emprego) e a atmosfera sombria que vai se desenhando é bem trabalhada pelo filme. No entanto, o final parece precisar de um pouco mais consistência para arrematar o filme. Fica a forte impressão de que algo mais ainda vai acontecer. Só que nunca vem.

Odete (Idem, Portugal, 2005)
Dir: João Pedro Rodrigues

Dos filmes do português João Pedro Rodrigues exibidos no festival, Odete me parece dos mais complexos, principalmente na construção dos personagens e em sua relação com a falta de alguém. Quando Pedro (João Carreira) morre num acidente de carro, deixa seu namorado apaixonado Rui (Nuno Gil) arrasado; sua história se cruza com a de Odete (Ana Cristina de Oliveira) uma jovem obcecada por ter um filho e que desenvolve um distúrbio psicológico em que imagina estar grávida de Pedro.

Rodrigues desenha esses personagens, em especial Odete, que ganha um tratamento bem mais generoso do roteiro (tanto em espaço como em respeito), de forma segura, mas que caminha para situações mais intensas e difíceis (a “transformação” de Odete, por exemplo, é interessantíssima). O filme é repleto de simbolismos, como o uso das alianças e a ideia de “concepção” que se dá num cemitério.

Existe todo um tom romântico na narrativa, incitada pela forte presença da canção Moon River (em várias de suas versões), de Henry Mancini, eternizada em Bonequinha de Luxo, que surge em momentos distintos. No fundo, a carência emocional é o que vai unir Odete e Rui, mesmo que a partir da falta dessa terceira pessoa que completaria os sonhos e necessidades afetivas de ambos. E apesar de ter um final redondinho, existe uma grata ambiguidade na forma como esses dois personagens escolhem lidar com essa situação, muito embora nunca saberemos até quando eles irão resistir.

O Sopro no Coração (Le Souffle au Coeur, França/Itália/Alemanha Ocidental, 1971)
Dir: Louis Malle

Na época de seu lançamento, O Sopro no Coração gerou polêmica por tratar de um tema que até hoje se mostra moralmente espinhoso: o incesto entre mãe e filho (e é muito interessante vê-lo pouco tempo depois de La Luna, do Bertolucci, no Cine Futuro – textinho mais abaixo). Embora seja um provocador nato, Louis Malle desenha muito bem seus personagens e suas angústias antes de apresentar essa situação.

Há uma construção bem estabelecida para se chegar nesse ponto crucial, em especial a história desse adolescente, Laurent (Benoît Ferreux), vendo aflorar sua sexualidade, com suas descobertas e também com o empurrão dos irmãos mais velhos e brincalhões.

Existe toda uma atmosfera libertária na forma como o filme lida com essas questões sem um pingo de moralismo, trazendo um frescor dos mais bem-vindos ao longa (não à toa, o início do filme lembra muito uma mistura de Os Incompreendidos, pelo olhar para uma juventude em êxtase, embora burguesa, e Acossado, pelos cortes inusitados).

Há também uma divisão bem clara no filme. Na primeira metade, o diretor formata o ambiente de descoberta desse garoto e sua relação com o pai linha dura (Daniel Gélin) em contraponto com o carinho da mãe (a italiana Lea Massari). No segundo momento, descobre-se que Laurent possui uma doença cardíaca e precisa passar um tempo numa estação térmica com sua mãe. É aí que a relação dos dois se intensifica. No entanto, é resolvida de maneira madura pelo longa, respeitando os anseios dos personagens e o rito de passagem do garoto. O tom final é dos mais agradáveis e descontraídos.

O filme foi exibido no Panorama como parte da Sessão Cineclube. Não sei por que esse diretor ou esse filme especificamente, mas faz muito sentido dentro de um conceito cineclubista de resgate de obras clássicas. Vê-lo na tela de cinema, com todas as falhas da película já gasta arranhando a tela e denunciando seu tempo, foi uma delícia.

4 thoughts on “Panorama Coisa de Cinema – Parte II

  1. Coincidentemente, Rafael, assisti O SOPRO DO CORAÇÃO essa semana, no Telecine. Concordo contigo, é um bom filme mesmo. Particularmente, gostei bastante da primeira parte, à lá AS MELHORES COISAS DO MUNDO; por outro lado, achei a segunda parte um tanto arrastada e cansativa, por mais que, como bem disse, seja aqui que apareça de forma mais ousada a temática do incesto. Acho admirável a forma descontraída como Malle aborda esse assunto tabu.
    De qualquer forma, repito o que costumo dizer: até agora não consegui me encantar com nenhum filme desse diretor – apesar de ter gostado desse e de ASCENSOR PARA O CADAFALSO. Será que ele é mesmo superestimado ou eu é que estou implicando desnecessariamente com ele?

  2. Priscilla, dos filmes do João Pedro Rodrigues, Odete parece ser o mais luminoso, o que lembra memso um tanto a aura almodovariana, mas acho que o português parte para a complexidade de seus personagens, que se transmutam no decorrer da narrativa. Sobre Trabalhar Cansa, é esperar estrear no circuito. Volte sempre ao blog, viu!

    Wallace, pelo que eu tinha lido sobre o filme, achei que, ao tocar no tema tabu, o cineasta seria bem mais incisivo, mas também achei admirável o tratamento dado. Sobre os filmes dele, vi poucas coisas, mas consigo gostar muito de Perdas e Danos, por exemplo. Ascensor para o Cadafalso também é bem bom. Pretendo ver em breve Amantes, mais polêmica à frente.

    Antonio, esse tratamento que o Malle confere ao tema é muito bem-vindo. O que importa para ele não é o tema em si, mas a construção dos personagens naquele ambiente burguês. Sobre Odete, acho uma história bastante complexa na formatação psicológica de seus personagens.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos