Paz no caos

Melancolia (Melancholia, Dinamarca/Suécia/França/Alemanha, 2010)

Dir: Lars Von Trier


As primeiras imagens de Melancolia trazem o pior do cinema de Lars Von Trier: cenas oníricas superestilizadas em câmera lenta que criam uma atmosfera fake e exibicionista, beirando o puro exercício de estilo (que lembra muito o início forçadíssimo do péssimo Anticristo). Parece que o filme vai desandar ali. Mas depois disso, após instalar o tom apoteótico, a narrativa toma um rumo certeiro, dividido em duas partes bem distintas que resolvem belissimamente bem o filme, apesar do clima totalmente pessimista.

É Von Trier na sua melhor forma porque ele sabe exatamente onde quer chegar, suas provocações têm substância e isso facilita bastante a aceitação de suas excentricidades (inclusive no que diz respeito ao largo uso dos efeitos especiais). As irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg) são os opostos que entrarão em reverso no decorrer do filme, sendo elas que nomeiam as duas partes da história.

A primeira metade é tomada pelo casamento de Justine com Michael (Alexander Skarsgård), totalmente organizado por Claire, sempre correta e sisuda, enquanto Justine se mostra deslocada e pouco interessada em todas aquelas ritualidades fúteis. Na verdade, ela vai trazer à tona sua tristeza latente, gerando desconforto geral. Aqui, o filme revela uma mulher insegura e imatura, fazendo pesar o clima onde devia haver festa. Justine não está bem.

No pós-casamento fracassado, é a vez de Claire mostrar toda a sua insegurança com a aproximação do planeta Melancolia e seu possível choque letal com a Terra. É quase como se o sentimento de Justine ganhasse materialidade na forma de um imenso planeta. Nesse momento, Justine sai da debilidade para encontrar uma certa paz de espírito, enquanto todos ao redor vão perdendo o controle dos nervos.

Nesse sentido, Von Trier faz um uso bastante pertinente de câmera. Enquanto a primeira parte é tomada pelo movimento trêmulo e vacilante das imagens, perfeito para transmitir o descontrole emocional de Justine (e o desconforto geral, inclusive da plateia), o segundo momento assume um tratamento mais fixo de imagem, condizente com o estado de calmaria que Justine começa a sentir (e transmitir), apesar da calamidade que se anuncia.


E assim tem-se a maior potencialidade de Melancolia: a construção sólida de dois momentos distintos, mas que dialogam muitíssimo bem entre si, sem que Von Trier precise dar explicações do porquê do comportamento das irmãs, muito menos sob quais circunstâncias aquele planeta pode vir a se chocar com a Terra. O mérito do filme é criar complacência na mais total desarmonia.

Kirsten Dunst, em seu provável melhor desempenho em um filme, merece com louvor o prêmio de Melhor Atriz conquistado em Cannes. Mas há de se fazer jus a todo um elenco em alta sintonia, em especial Charlotte Gainsbourg, tão importante contraponto no filme. Participações de Charlotte Rampling e John Hurt são sensacionais.

Dialogando com as particularidades do filme catástrofe, Von Trier prefere filmar a catástrofe emocional que parte de uma irmã à outra, mas tomando Justine como sua maior protagonista. É ela quem melhor vai conseguir se desamarrar das regras sociais e apegos do mundo físico, encontrando sua paz de espírito na percepção do fim, sem temer. O pessimismo comum do cinema de Von Trier se explicita na fala de Justine: “A Terra é má, ninguém vai sentir falta dela”. Aos que ficam, é preciso encontrar paz no caos.

7 thoughts on “Paz no caos

  1. Só tenho lido excelentes comentários sobre essa obra. Tô tão ansiosa para conferir, apesar de achar que irá demorar um bocado pra estrear nos cinemas da minha cidade.

  2. Grande texto, Rafael! De fato, o filme tem duas partes muito distintas (especialmente no modo como é filmado) e mesmo assim elas são atadas com perfeição na última cena, a mais impressionante que já testemunhei em muito tempo. Avaliando de uma forma pessoal, é o filme de von Trier que mais dialogou comigo, pois sinto empatia tanto pelo desejo de Justine em se desprender de tudo e finalmente ter a paz de espírito que parece obstinada em encontrar quanto o temor de Claire em encarar a morte e o que virá posteriormente. Entendo perfeitamente o seu incômodo com a abertura. Para mim, o filme é irretocável do primeiro ao último minuto.

    Um abraço.

  3. Bom, apesar de discordar radicalmente do seu primeiro parágrafo, hehe, concordo com sua boa análise do filme. Melancolia é preciso, forte, impactante. Dialoga de forma perfeita com o real e o simbólico.

    Acho que o início do filme é uma forma de nos preparar, fazer entrar no clima do que vem pela frente e já adiantar o fim inevitável para que não nos percamos em expectativas inúteis.

    bjs

  4. Wallace, gosto do Von Trier, mas com um certo enjoo. Os dois filmes anteriores dele são terríveis, mas eu fiz as pazes com o cineasta com esse Melancolia. É impossível ficar indiferente ao filme.

    Realmente Kamila, tem muita gente falando muito bem do filme, parece que dessa vez ele emplacou bem. E vê-lo no cinema é das experiências mais gratificantes.

    Antonio, não gosto das gaiatices do Von Trier e acho seus dois últimos filmes péssimos, mas esse filme me ganhou. Veja pelo todo.

    Alex, no fundo, eu até acho aquela cena final um tanto dispensável (o plano final, digo), mas a construção das duas metades é importante e filmados com precisão pelo diretor. Mas ainda implico com a abertura, plástica e solene demais. Que bom que gostou do texto.

    Então Amanda, eu tenho essa bronca com o cinema do Von Trier quando ele quer se mostrar pretensioso, solene e plástico demais, como se fosse um exibicionismo, o tipo de coisa que ele não precisa fazer. De qualquer forma, o restante do filme me faz perdoar esses problemas.

    Cleber, eu gosto muito de uma fase do Von Trier com Ondas do Destino, Dançando no Escuro e Dogville, depois acho que ele fica pretensioso demais, sobe pra cabeça, mas Melancolia me pegou de jeito. O cara tem talento.

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