Uma mulher e quatro filhos, um outro na barriga. É esse o núcleo familiar que os diretores Walter Salles e Daniela Thomas resolvem observar para compor seu mais novo filme. Digo observar porque seus personagens possuem vida própria e cada qual segue seu tortuoso caminho, acompanhados pelo carinho que os realizadores conferem a cada um deles, em igual tamanho. Depois do ótimo O Primeiro Dia e o excelente Terra Estrangeira, a dupla Salles-Thomas retorna com um filmaço.
Cleuza (Sandra Corveloni) é uma empregada doméstica, fanática por futebol e torcedora fiel do Corinthians, que batalha para sustentar os filhos na periferia de São Paulo. O mais velho é Dênis (João Baldasserini), um motoboy que se arrisca nas ruas da capital; Dinho (José Geraldo Rodrigues) procura na religião uma força para enfrentar a vida; Dario (Vinícius de Oliveira) sonha em ser jogador de futebol e se esforça para entrar em algum time enquanto Reginaldo (Kaique Jesus dos Santos), o mais novo deles e de cor negra, procura por seu pai, diferente do de seus irmãos. Mais uma vez, em Walter Salles, a figura paterna se mostra ausente.
Quando vi o filme pela primeira vez, me incomodou muito a forma como a história de cada um se entrecruzava, me parecia muito retalhado e não conseguiu me envolver. Talvez a expectativa que eu tinha para ver o filme tenha me atrapalhado um pouco e saí do cinema com a impressão de que o filme podia ser melhor. Mas numa revisão, o filme me ganhou de cara e toda essa impressão se esvaiu, à medida que cada uma daquelas pessoas se fortalecia na tela enquanto personagens principais (e são cinco).
Nesse estudo de personagens, notamos como todos eles são pessoas falhas e, por isso mesmo, interessantes. A mãe, grávida, está sempre com um cigarro na mão e solta palavrões o tempo todo, inclusive com os próprios filhos, que apanham dela, mas também recebem o carinho materno na hora certa. Para ser admitido em algum clube, Dario falsifica a carteira de identidade a fim de parecer mais novo. Dênis, na malandragem, passa a roubar dos carros que ficam estacionados no sinal.
A narrativa do filme é toda marcada pela naturalidade com que os atores compõem seus personagens, evidenciando a entrega de cada um, num elenco em que todos, sem exceção, merecem ser destacados. Uma fotografia escura e pesada muitas vezes põe os personagens na penumbra total, deixando transparecer somente suas silhuetas, fortalecendo a idéia de pessoas rodeadas por dificuldades, mas mesmo assim persistentes. Uma direção segura, ajudada por uma montagem certeira (como quando as mãos dos torcedores no estádio se confundem com as mãos dos fiéis na igreja), enriquece bastante o trabalho.
O filme ainda é cheio de significados, a começar pelo título que, no primeiro momento, evoca no futebol a troca de passes entre os jogadores sem que o adversário tome a bola, nos fazendo refletir sobre a persistência daqueles personagens em continuar no “jogo”. Além disso, “linha” dá idéia de caminho, e no caso dessa família, a linha parece tortuosa, mas nunca finita.
Filme fantástico. Eu daria as cinco estrelas completinhas. Pela ousadia de um elenco com atores desconhecidos porém bem preparados, um roteiro bem amarrado, uma forma de despertar sentimentos sem ser piegas que só o Walter Salles é capaz. Uma carga de drama extremamente realista, uma vez que os problemas dos personagens são tão comuns, e mostram como esses problemas tomam tanto dos nossos dias! Não se espante em encontrar um personagem como esses sentado do outro lado da tela do cinema. Outro ponto a ser destacado: a forma como o bem e o mal se apresentam. Assim como na realidade, cada pessoa usa suas doses de cada. Realista. Brilhante.
Rafael, adorei o texto! Um dos melhores que li sobre este maravilhoso filme!
Bom final de semana!
Vale a pena rever filmes. Não é raro descobrirmos grandes trunfos em obras que, à primeira vista, nos deixaram desejando algo mais. O potencial de uma revisão é alto.
LINHA deve ser de muita qualidade, mas infelizmente não chegou a uma quantidade suficiente de salas para que todos os interessados pudessem assistir, como ocorreu comigo.
Cumps.
E aí, Rafael, vc viu as duas vezes no moviecom? Como é que tava o som? Eu queria ter revisto tb, mas preferi nao arriscar uma irritação desnecessaria e esperar pelo dvd, que sai em janeiro.
Abraços!
Belo texto. Linha de Passe é um filmaço mesmo. E concordo contigo quanto ao final, acho a conclusão (?) do filme genial, porque totalmente coerente com a proposta de Salles/Thomas.
Indhy, concordo com tudo que você disse. E ainda tô impressionado de como o filme melhorou muito pra mim na revisão. A idéia de bem/mal é uma ótima observação. Não podemos julgar os personagens porque são tão “defeituosos como nós mesmos”.
Opa, obrigado Kamila. Nem sei se está tão bom assim. Mas também, com um filme desses, a inspiração da gente aumenta.
Com certeza Gustavo, revendo filmes podemos gostar de algo que num primeiro momento nos desagradou, ou o inverso. E assim que tiver a oportunidade de ver Linha de Passe, não deixe em branco.
Então Hélio, vi sim ambas no MovieCom. E o som não ajudou muito não. Tava horrível mesmo. Já que tu viu num cinema melhor em Sampa, é melhor deixar pra rever em DVD mesmo.
Valeu Wallace. O final é mesmo o grande ponto alto do filme, dá o tom exato da vida contínua e tortuosa daqueles personagens. O tom de busca por um algo melhor.
Fala Rafael ! Novidade: meu blog mudou de endereço, devido a alguns problemas com o blogger. Agora é http://novascronicas.blogspot.com
Já tem um texto lá, sobre o Boogie Nights. Dá uma olhada …
Abração !
A-ha!!!
É exatamente o que comentamos acerca da expectativas… quando eh exagerada acaba nos impedidindo de ver o filme direitim.
O texto tá ótimo e o filme me deixou muito muito satisfeita! Me envolveu mesmo…
Abraços grande gafa! Vou comentar tb simplesmente amor!
Cara, repito o que escrevi lá no meu blog: um dos melhores filmes nacionais atuais que eu já vi!
Abs!
Com certeza Dedê, às vezes é difícil, mas é preciso medir a expectativa. Ela pode atrapalhar muito. Nessa revisão, percebi que é muito fácil gostar desse filme. Bom receber sua visita aqui no blog. Volte sempre.
Dudu, Walter Salles é ótimo. Seus filmes são os melhores do cinema atual. Linha de Passe é o melhor do ano disparado, embora muitos filmes eu ainda precisava ver.