Seguindo o rastro da grana*
Das expressões idiomáticas populares ditas em terras baianas, a interjeição “receba!” pode ser entendido como um “bem feito”, “viu só” ou “aprenda a lição”. Receba! é também o título do filme baiano dirigido por Rodrigo Luna e Pedro Perazzo, já em cartaz nos cinemas brasileiros. Engana-se quem pensa encontrar um filme caricato sobre personagens locais exóticos.
Trata-se de uma trama policial baseada no livro A Guerra dos Bastardos, da carioca Ana Paula Maia. Adaptado para o cenário soteropolitano, o filme ganha ares regionais, mas preserva o traço da criminalidade e do ambiente sujo do underground urbano. A história acompanha a caçada por uma bolsa com conteúdo ilegal e valioso. Inicialmente, Amadeu (Daniel Farias), um ex-ator pornô, é quem encontra a bolsa e não pensa duas vezes em pegá-la e fugir com ela.
Ele e sua namorada, a boxeadora Gina (Edvana Carvalho), precisam muito do dinheiro para se livrarem de outros esquemas escusos, mas ficam no encalço da dupla de policiais corruptos (vividos por Evelin Buchegger e Jackson Costa) a mando do figurão poderoso (Narcival Rubens), dono daquele conteúdo. Depois que Amadeu some nessa caçada, Gina tem que encontrar o paradeiro da tal bolsa.
“Quando a gente ambienta o livro de Salvador, acabamos absorvendo a forma como a gente enxerga a cidade e a Bahia, o jeito de ser das pessoas e daqueles personagens inseridos nesse contexto. E tem também um elemento do humor soteropolitano que é trabalhar com situações tão absurdas que se tornam engraçadas”, afirmou Perazzo, em conversa com A Tarde.
Os diretores também contaram que a intenção não era criar um retrato exagerado da forma de falar e das gírias baianas, assim como evitar os lugares mais associados à paisagem vendável da cidade. “A única imagem de mar que aparece no filme é um mar plotado na parede da academia”, relembrou Luna. “Ao mesmo tempo, as pessoas reconhecem os cenários vistos no filme como sendo de Salvador, mesmo distante dos pontos turísticos”, destacou o diretor.
Noir à luz do dia
Outra marca precisa de Receba! é que não se trata de um filme policial com cenas de grandes perseguições, ritmo apressado e montagem acelerada. Ao contrário, a narrativa tem um compasso mais cadenciado, o que acentua a tensão dos acontecimentos e dos passos errantes que os vários personagens dão seguindo o rastro do dinheiro – além de reavivarem rancores do passado.
“Na escrita do roteiro, a maior mudança que fizemos em relação ao livro é de tom. A literatura de Ana Paula Maia é mais seca, os personagens são mais brutos, e a gente foi por um caminho menos gráfico e violento, um pouco mais irônico também. É como se o livro fosse mais Tarantino e o filme mais irmãos Coen. Queríamos algo mais absurdo, na linha de Fargo”, destacou Perazzo.
É bem evidente no longa baiano a referência ao cinema dos Coen e essa que é uma de suas obras mais celebradas. Indo por este caminho, Receba! prefere não apressar as situações, mas moldar melhor os personagens. As intenções e anseios de cada um ficam claros para o espectador, mesmo que mudem no decorrer da narrativa.
Os diretores contaram também que preferiram filmar uma Salvador diurna, diferente dos filmes do gênero costumeiramente ambientados à noite. “A gente queria fazer mais um filme policial do que um filme de ação. É uma espécie de cinema noir, mais esculhambado e de dia. A gente quer emplacar essa definição. Nos interessa mais o suspense da cena do que a ação propriamente”, observou Luna. “É como se a cidade fosse perigosa até para quem é do crime”, complementou Perazzo.
Protagonismo
As limitações orçamentárias também não permitiam fazer um filme com muita pirotecnia, o que acabou favorecendo outros chaves de encenação, especialmente com atenção dramática recaindo sobre os atores, a maioria deles vindos da cena teatral de Salvador.
Gina, a personagem de Edvana Carvalho, abre o filme, sai de cena um pouco, mas da metade em diante ela assume de fato o protagonismo da história. Também uma ex-atriz pornô, assim como o namorado, ela busca se reinventar no esporte, mas o passado sempre volta para assombrá-la, na medida em que essa misteriosa bolsa passa a representar uma oportunidade de refazer a vida.
Edvana, que também conversou com A Tarde e que passa por um momento muito frutífero na carreira, depois de ter se tornado mais conhecida do grande público ao viver Inácia na nova versão da novela Renascer, falou sobre a personagem: “A Gina foi um presente bem gostoso porque é uma personagem bem diferente das coisas que eu já fiz. Ela é realmente uma mulher fugindo do seu passado, querendo um presente diferente, mas o presente também está enroscado”.
Gina funciona como uma espécie de bússola moral diante de um universo tão sujo e corrupto ao redor. “No meio de tudo isso, ela consegue ter dignidade, ética, mesmo no contexto bem louco em que ela vive. É uma mulher forte e a gente precisa de protagonistas femininas fortes no cinema brasileiro”, pontuou a atriz.
Edvana destacou também a importância de protagonizar um filme com uma personagem negra de meia idade, relacionando-se com um rapaz mais jovem que ela (o que faz conexão com a peça de teatro que ela apresenta atualmente na capital baiana, Aos 50 – Quem me Aguenta?).
“Todos os personagens têm um pouco da gente, em alguma situação, algum trejeito, a gente procura muito vestir a pele da personagem. Fazer personagens 50+ é muito importante porque a gente vive numa sociedade etarista. A população brasileira está envelhecendo, mas de forma diferente do que nossas avós e mães envelheciam”, arrematou a atriz.
Com isso, Edvana acrescenta mais uma mulher de personalidade forte na sua filmografia. Com um potencial popular e uma construção narrativa madura e precisa – ainda que seja o longa de estreia de Perazzo e o segundo de Luna, que já havia feito o documentário Ridículos – Receba! é também um ponto fora da curva dentro da cinematografia baiana, arriscando no cinema de gênero, mas produzindo algo com a nossa cara e sotaque.
Receba! (Brasil, 2021)
Direção: Rodrigo Luna e Pedro Perazzo
Roteiro: Pedro Perazzo
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 27/10/2024)