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Salamandra / Entrevista com Alex Carvalho

Salto no abismo*

O pernambucano Alex Carvalho tinha 27 anos quando saiu do Recife para viver fora do Brasil no ano 2000 – morou em Angola antes de partir para Londres, onde se estabeleceu e constituiu família, vivendo lá até hoje. Trabalhando com cinema e audiovisual, ele buscava um material que pudesse ser sua estreia no cinema dirigindo um longa-metragem.

“Foi um amigo meu, artista plástico francês, que me apresentou o livro. Quando eu li, fiquei impactado”, contou Carvalho. Ele está falando de La Salamandre, sem tradução no Brasil, escrito por Jean-Christophe Rufin. Me impressionou a forma com que a história era contada e eu tinha uma grande atração pelo fato de se passar em Pernambuco. Além disso, os personagens se encontram com muita energia nessa trama, e eu estava procurando uma coisa com essa pegada”, afirmou o diretor em conversa exclusiva com A Tarde.

Disso, nasceu o filme Salamandra, já está em cartaz nos cinemas brasileiros. Na trama, acompanhamos a história de Catherine (Marina Foïs), uma francesa de visita ao Recife para se encontrar com a irmã (Ana Mouglalis), já residente no Brasil, depois da morte do pai delas. Por acaso, em um dia na praia, ela conhece Gilberto (Maicon Rodrigues), e os dois acabam desenvolvendo uma relação amorosa improvável, mas de intensidade crescente.

Eles pouco se importam com as muitas diferenças entre ambos. Ela é mais velha do que ele, além de mais rica – na França, sua família nem é tão abastada assim, mas no Brasil o seu aporte financeiro aumenta. Ela é a típica europeia caucasiana, enquanto ele é um negro retinto que trabalha como atendente em um bar.

Carvalho conta que tinha certa autoridade para falar sobre embate de classe, o que remete ao passado colonial brasileiro. “Mas eu me senti extremamente amedrontado de como trataria uma personagem francesa porque seria uma leitura muito ousada para mim”, confidenciou o diretor. “Eu peguei algumas qualidades da Catherine que estão no livro e me esforcei para trazê-las para a tela, sem necessariamente dar tudo de graça. O que me interesse é um cinema de questões; quero levantar dúvidas e não trazer soluções”.

E, de fato, Catherine é um personagem muito misteriosa. Ela não se revela facilmente, se esconde por trás de uma expressão sempre muito dura e fechada. Parece muito senhora de si, determinada e decidida, mesmo que embarque em uma aventura um tanto inconsequente e arriscada, deixando até mesmo sua irmã de lado. É como se desse um salto no abismo sem paraquedas.

Autoanálise

O diretor contou também que essa história foi importante para que ele revolvesse alguns assuntos pertinentes à sua própria trajetória. “Quando você vive muito tempo fora do seu país, há essa dúvida cultural de quem você é de fato. Você é brasileiro ou não? O que eu estou fazendo aqui nesse lugar? Todo dia você acorda com essas dúvidas. Isso era uma coisa que me perturbava muito. Então eu vi no livro a possibilidade de me aprofundar um pouco nesses temas, de me questionar, é praticamente fazer uma autoanalise. Esse foi o meu primeiro impulso”, afirmou o cineasta.

A partir daí, Carvalho começou a mergulhar nessa trama e investigar a vida dessa mulher já que se tratava de uma história real. Ele veio muitas vezes a Recife para tentar encontrá-la, pois supostamente ela viveria lá até então, mas nunca a achava. Até que ele teve um primeiro encontro com o autor do livro, na França, e este lhe confidenciou que a história, na verdade, se passou em Salvador e não na capital pernambucana.

“Pra mim isso foi muito interessante porque eu percebi que essa história já foi muitas vezes adaptada, desde a escrita do livro. Então isso me deu liberdade, me colocou em um zona de conforto para que eu pudesse trazer para o filme um pouco mais do meu tempero, das minhas dúvidas, minhas interrogações. E a partir disso juntar com esse monte de coisas envolvidas: raça, gênero, classe social, poder aquisitivo, colonialismo”, arrematou o diretor.

Nesse caldeirão temático, os personagens se movem a partir dos instintos e impulsos que os fazem tomar atitudes um tanto precipitadas, especialmente Catherine. “Como o meu trabalho é muito voltado para um filme de personagens, esse foi outro desafio que eu tentei colocar: como eu posso deixar essa personagem numa incógnita? Você vai a conhecendo aos poucos e entendendo que essa mulher está despedaçada. E qualquer ser humano despedaçado termina se transformando numa pessoa meio misteriosa porque existe muita sensibilidade no que ela está vivendo”, defendeu o diretor.

Explosão de sentimentos

Carvalho assume, portanto, os riscos de lidar com tantos temas e proposições que estão em grande evidência atualmente e que despertam muitos debates acalorados. Isso se dá por essa opção de deixar a protagonista se levar pelos seus instintos, sem grande racionalidade, fazendo o filme esbarrar em muitas dessas questões, tanto de ordem social, como íntimas.

O diretor se defende, apostando na percepção do público para essa explosão de sentimento: “Eu realmente confio que as pessoas são sensíveis e conseguem captar as nuances de um personagem”. É possível, claro, fazer essa abstração e muitas interpretações. Mas ao se colocar em um posição mais defensiva, muita coisa fica em aberto e nem sempre o filme consegue amarrar bem suas pontas.

As atitudes de Catherine, especialmente ao se entregar de corpo e alma para este rapaz que ela conheceu há tão pouco tempo, faz com que haja dúvidas sobre o que de fato se passa na cabeça dela – a mulher, inclusive, investe todo o dinheiro ganho na herança do pai ao abri um bar junto com Gilberto na orla de Recife, mesmo sabendo dos perigos e das pessoas com quem ele está envolvido.

A dimensão sexual é outra coisa importante na trama, já que os amantes se mostram bastante voluptuosos, o que abre discussões sobre a fetichização do corpo negro e sobre o lugar instintivo dessa mulher. São, portanto, muitos temas e debates que nem sempre encontram um reforço substancial de discussão no filme.

Salamandra (La Salamandre, Brasil/Alemanha/França, 2021)
Direção: Alex Carvalho
Roteiro: Alex Carvalho, Thomas Bidegain e Alix Delaporte

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 30/06/2024)

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