À beira do fantástico / Pulsão juvenil*
Se a pecha do realismo é uma constante no cinema brasileiro enquanto representação social do país – herança forte do Cinema Novo que permanece viva até hoje, reconfigurada para os novos tempos –, é cada vez mais perceptível dentro da filmografia nacional recente o uso e apropriação do fantástico e da fabulação nas tramas.
Não são necessariamente obras que mergulham de cabeça no gênero – apesar de haver muitos desse tipo no cinema brasileiro –, mas em alguns exemplares é como se o fantástico fosse uma possibilidade narrativa que estivesse sempre à espreita e, em alguma medida, pudesse interferir nas histórias. É o caso de Sem Seu Sangue, dirigido por Alice Furtado.
O filme, no entanto, parece fugir do gênero, inclusive por se filiar a um registro ficcional puro, mas vai saber desviar das possibilidades do real no momento oportuno. No fundo, trata-se de uma história de amor juvenil, o primeiro amor da jovem Silvia (Luiza Kosovski), com desdobramentos trágicos.
Ela conhece Artur (Juan Paiva), um jovem que acabou de chegar a sua sala de aula, expulso de outros colégios. Eles se atraem um pelo outro, mas algo parece errado no comportamento dele. O garoto sofre de uma rara doença, a hemofilia, que causa a má coagulação do sangue. Com a saúde debilitada, ele se mostra um rapaz arredio e antissocial.
Com isso, a diretora Alice Furtado cria um melodrama adolescente, mas dota seu filme de certa estranheza, como se a morte e o fim espreitassem aqueles personagens. É uma trama curiosa em que a atmosfera efusiva da descoberta amorosa e sexual entrasse em conflito com a debilidade do corpo e a possibilidade do luto.
Mas o que permanece forte é a pulsão juvenil desse amor maior que causa reações no próprio corpo, especialmente a partir das noções de falta e ausência. Assim, a protagonista vai buscar alternativas para sanar seus desejos e carências a partir de práticas do mundo espiritual.
É uma aposta arriscada essa que o filme faz. Esbarra em atividades religiosas que ainda são tabus, como o vodu haitiano, e é quando o filme assume a possibilidade de lidar com algo que extrapola a compreensão racional. Tomada por essa paixão irremediável, a racionalidade é o que menos pesa para Silvia, assim como as suas atitudes diante da necessidade de reencontrar seu grande amor desafiam as regras da realidade.
O filme estreou ano passado na Quinzena dos Realizadores, do Festival de Cannes, passou pelo Festival do Rio e estreou em alguns cinemas do país essa semana. Atualmente pode ser visto no catálogo da Netflix.
Sem Seu Sangue (Idem, Brasil/França/Holanda, 2019)
Direção: Alice Furtado
Roteiro: Alice Furtado e Leonardo Levis
*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 11/10/2020)