Synonymes

Em busca de uma identidade*

Há um bom tempo que o tema dos refugiados na Europa tornou-se matéria-prima para muitos filmes, livros e toda sorte de narrativas e discussões recentes. Synonymes, do cineasta israelense Nadav Lapid, pode se enquadrar nessa onda temática, mas só superficialmente. Isso porque o filme é diferente de tudo o que temos visto nos últimos anos, uma verdadeira experiência de cinema e sagacidade narrativa.

Filme inesgotável de leituras e significações, Synonymes é uma atiradeira de grandes cenas e uma espécie de jornada de transformação de seu protagonista. Yoav (interpretado com intensidade por Tom Mercier) é um imigrante israelense, ex-combatente do exército, que chega a Paris disposto a incorporar ali um novo modo de vida. Ele quer se distanciar o quanto pode da sua nacionalidade e “aprender a ser francês”, como ele mesmo afirma. Voltar para Israel não está em seus planos.

O personagem cai de pára-quedas na Cidade Luz, fugido de seu país natal, e desde as primeiras cenas o filme coloca este homem – e a nós, espectadores – numa rede de situações e circunstâncias sem um fio linear narrativo, por vezes sem muita clareza também. Acompanhamos Yoav no seu intuito de inserção no estilo de vida francês. Com isso, o filme discute as identidades nacionais e, mais profundamente, nosso lugar no mundo. Afinal, o que é ser francês, israelense ou brasileiro?

De início ele é ajudado por um casal que vive no prédio onde ele vai tentar se abrigar na primeira noite. Émile (Quentin Dolmaire) e Caroline (Louise Chevillotte) são inicialmente os guias e porto seguro de Yoav, até se tornarem peças de complicação nos caminhos tortos do protagonista, quando não representarem interesses amorosos arriscados.

Ali na França ele busca se enturmar, conseguir trabalho e vislumbra até mesmo um futuro como escritor – adotando o francês como língua, é claro –, numa tentativa de deixar para trás sua identidade israelita e suas experiências no exército – algo que só vislumbramos em algumas cenas. O passado familiar também será uma sombra a persegui-lo. E logo ficará claro para o personagem como essa transmutação é tarefa das mais difíceis.

Francofonia

Apesar de dominar o básico da língua francesa, uma das primeiras atitudes de Yoav ao chegar na França é comprar um dicionário; o livro será seu maior aliado nessa jornada. Conhecer o vocabulário francês é como se fosse um primeiro passo para conquistar essa identidade pela qual ele é tão fascinado e atraído – não se sabe se pelo gosto e puro prazer da língua e da cultura francesas ou se apenas por necessidade de fugir de sua cultura original.

O sobretudo amarelo que ele irá ganhar das mãos de Émile no início do filme e que usará por boa parte da trama é outro desses signos que representam uma mudança e uma alegoria: a indumentária que tanto emula certo estilo de se vestir da classe média parisiense funciona como uma armadura, um uniforme que o coloca de par em par com os demais franceses – ou assim ele pensa.

Ele caminha pelas ruas treinando as palavras e mesmo quando conversa com outros conterrâneos, que porventura encontra na França, ele sempre fala em francês, enquanto os demais se expressam em hebraico. Nesse sentido é curioso pensar em Yoav nesse auto-exílio agora não mais impossibilitado de voltar a Israel, mas aquele que faz essa escolha por si só.

Judeu errante

Ainda que longe de emular a mitologia cristã, de certa forma Synonymes ressignifica a ideia do judeu errante aqui na figura de Yoav, impelido a caminhar pelas ruas de Paris em busca dessa inserção num mundo e numa cultura que não são seus. Sendo sua jornada pontuada por uma série de percalços, o filme traduz isso a partir de um tratamento disruptivo, errático mesmo na própria maneira deles irromperem a tela.

A cada nova cena vemos o personagem lidando com situações embaraçosas, que vão do tédio ao embate, muitas vezes verbais, com outros personagens: a cena do teste como modelo, o encarar as pessoas no metrô, a dança na boate ou mesmo o enfrentamento com uma metralhadora imaginária sobre a arquitetura de Paris. O filme é recheado de momentos intensos.

Toda essa atmosfera pulsante, cheia de vigor, coloca o espectador num estado de constante alerta. Nunca sabemos o que virá a seguir e como encaixar aquela situação no quebra-cabeça que acaba se tornando a trajetória de Yoav, apesar de intuirmos os significados que podem estar por trás de cada gesto dele. O filme é vibrante o suficiente para não querermos abandonar este fascinante personagem.

Tudo isso é muito devedor do cineasta inquieto que é Nadav Lapid. Esse é apenas seu terceiro longa-metragem (depois do intrigante O Policial e de A Professora do Jardim de Infância), mas todos possuem uma marca muito pessoal: essa propensão para a descontinuidade e a surpresa, apelando para a participação do espectador no jogo de entendimento que seus filmes propõem.

Isso faz de seu cinema um trabalho sem igual na produção contemporânea, realmente dono de um estilo muito próprio. O Urso de Ouro conquistado no Festival de Berlim é um coroamento digno para um trabalho tão coeso e original. Há de se destacar também a atuação de Tom Mercier, muito intenso como esse protagonista cheio de vigor e vida, tentando forjar seu lugar no mundo. Especialmente num mundo tão hostil para quem vem de fora. Ser francês não é para qualquer um.

Synonymes (Israel/França/Alemanha, 2019)
Direção: Nadav Lapid
Roteiro: Nadav Lapid e Haim Lapid

* Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 15/12/2019)

 

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