Tempo vivo

Girimunho (Idem, Brasil/Espanha/Alemanha,
2011)
Direção:
Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.
Dentro
de uma certa cena independente no cinema brasileiro (pouco visto e conhecido,
por isso é independente), o mineiro Girimunho
faz parte dos bons projetos que despontam no ano na safra nacional, embora
esteja longe de chegar ao grande público. A partir de um registro naturalista e
intimista, o primeiro longa-metragem de Clarissa Campolina e Helvécio Marins
Jr., ambos do coletivo Teia, é uma observação do tempo, pela visão envelhecida,
e tudo de positivo que isso carrega, de uma senhora que vive no interior de
Minas Gerais.
O
que Dona Bastú (Maria Sebastiana Martins Alvaro) vê passar a sua frente é a
vida simples e corriqueira de seu ambiente natural, a pacata paisagem
ribeirinha de São Romão, às margens do Rio São Francisco, seu dia-a-dia e
povo humilde. Mas sua visão se torna entremeada pela aura da morte ou da
simples espera pelo fim, seja na morte repentina do marido Feliciano, seja pela
própria consciência da sua finitude. A neta que está prestes a deixá-la para ir
morar e trabalhar numa cidade maior seria um dos indícios dessa noção de
“perda”. 
Porém, por mais sombrio e triste que tudo isso possa ter em essência, o que menos há
em Girimunho é pesar ou tristeza pelo
que se foi ou que está para ir. Pelo contrário, a rotina pacata e a espera pelo
fim não impedem que a alegria ainda esteja presente. Não necessariamente uma
alegria de festa (que também há), mas a de paz de espírito. Nem mesmo
quando o espírito de Feliciano parece retornar para bater suas ferramentas na
oficina de casa, assustando Bastú e intrigando os vizinhos, cria-se aí um clima
de mistério ou tensão. Exala muito mais uma atmosfera de ancestralidade que
aquele povo reconhece como possível.
É
aí que entra em cena Maria do Boi (Maria da Conceição Gomes de Moura), senhora
amiga de Bastú, cantadeira da região, celebrando com alegria a tradição oral que
remonta a tempos imemoriais. É a ela que Bastú recorre para fazer acalmar a
alma do marido, outra senhora que apresenta uma relação bastante particular com
as coisas da morte, em especial através da celebração musical.
Para
quem acha que nesse tipo de filme “nada” acontece, em Girimunho a noção de tempo está ligada à própria ideia de espera e
daquilo que podemos fazer, ou como se portar (suportar?) enquanto aguardamos.
Dona Bastú entende isso muito bem, não tem pressa da vida, como a própria
narrativa do filme e seu apego pelos tempos mortos (expressão infeliz, me parece, porque a impressão de tempo, por mais estático que seja, sempre tem
algo a dizer, algo sempre acontece). Afinal, como fala a protagonista em certo momento, “o tempo não
para, quem para somos nós”.
Se
o filme pode lembrar a atmosfera etérea e sensorial do cinema de um Apichatpong
Weerasethakul, preservando a transcendentalidade da morte e seus mistérios, a
obra mineira consegue se mostrar fiel a um certo estilo de vida interiorano
brasileiro, que preserva ainda um conhecimento secular das coisas de seu povo.
O
tom natural, outro fator forte de percepção na obra, é mérito de um trabalho de
direção cuidadoso, que encontrou no próprio espaço físico pessoas que possuem contato
direto com as questões apresentadas no filme. O aspecto documental é sentido em
cada cena, principalmente pela presença dos atores que emprestam sua própria
experiência de vida para compor seus personagens. Perfazendo um belo paralelo
com o também mineiro O Céu Sobre os Ombros,
Girimunho ganha força pela
naturalidade imensa como que encena a própria vida de quem os faz, ao mesmo
tempo em que o fio de história ficcional está presente a todo momento (e se
conclua satisfatoriamente).
Por
mais que esse tipo de experiência seja bastante propenso ao improviso e à interferência
do acaso, como próprio da tradição documental, nota-se no todo uma preocupação
pelo enredo contado e sua conclusão, embora aberta a muitas interpretações (e não
deixa de ser interessante ver o nome de Felipe Bragança assinando o roteiro
aqui, ele que revelou facetas mais fantasiosas e menos naturalista em filmes próprios
como A Alegria e A Fuga da Mulher Gorila, em parceria com Marina Meliande, montadora
aqui).
Em
Girimunho, celebra-se a vida através
da própria despedida, mesmo que ela demore ou que insista em não se cumprir. Porque
mesmo na mais árida das regiões, onde nada parece acontecer e o tempo insiste
em soar suspenso, um girimunho (um redemoinho, no dizer local) cruza, de
relance, a estrada de chão batido. Revela vida, portanto. O tempo não parou.

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