Pela possibilidades de existir*
Quatros amigas que vivem em Belo Horizonte se preparam para a partida de uma delas para São Paulo. Transitando por entre a periferia de BH, elas enfrentam as lutas diárias, mas se fortalecem pela amizade. São também pessoas transgêneros e/ou não-binárias, o que faz com que sua união seja ainda mais importante enquanto constituição de uma rede de apoio tal qual uma família constituída por laços de afeto.
É por esse caminho de um cinema amoroso que trafega Tudo o que Você Podia Ser, novo filme do diretor Ricardo Alves Jr., já em cartaz nos cinemas brasileiros, através do projeto Sessão Vitrine Petrobrás, que exibe filmes nacionais a preços fixos. O cineasta, mais conhecido por filmes um tanto mais rígidos narrativamente, como Elon Não Acredita na Morte e Vaga Carne – este em co-direção com a atriz Grace Passô –, investe agora em um tom muito mais naturalista.
“Eu acredito que cada filme se constitui com uma forma própria. Eu gosto de pensar nas formas dos filmes e em como eu posso contar essa história, de que maneira e com qual linguagem. E nesse filme eu quis investigar a construção do realismo, em que o espectador se sentisse dentro do filme”, afirmou o diretor que conversou com exclusividade com A Tarde.
Tudo o que Você Podia Ser, então, nos faz adentrar na vida dessas pessoas pela chave da aproximação. Vividas pelas atrizes Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal e Will Soares – cujas personagens recebem o mesmo nome das atrizes, com o adendo de que Will interpreta Willa no filme – elas carregam conflitos pessoais que estão na ordem do dia a dia.
Aisha é quem está indo cursar uma faculdade em São Paulo, e Willa, com quem ela divide o apartamento, pensa nos apertos financeiros agora que sua amiga vai embora e as despesas vão aumentar. Bramma é um pessoa com HIV e ainda não contou isso para as amigas, enquanto Igui também precisa decidir se parte para fazer doutorado fora do Brasil.
A narrativa acompanha essas histórias que se entremeiam, mas carregam as particularidades de cada uma, ao mesmo tempo em que elas se fortalecem juntas, formando uma espécie de comunhão familiar. O filme todo possui essa cadência do cotidiano, centrado no cuidado que uma nutre pela outra.
Encontros enredados
O cineasta falou também sobre como o encontro com as atrizes foi importante para formatar a narrativa do filme, realizado de modo muito peculiar. “O roteiro começou a ser construído a partir de uma série de entrevistas e conversas que a gente fez com elas anteriormente. Elas são a chave da criação. A partir disso, das ideias que elas foram trazendo, fomos construindo as histórias e às vezes a gente misturava a história de uma na trama da outra”, revelou o diretor.
O filme possui um fio de roteiro idealizado por Germano Melo, mas a construção dos diálogos foi feita na interação do diretor com as atrizes e com a ajuda do roteirista que estava o tempo todo no set de filmagens. “Essa é uma forma que eu gosto de filmar que está muito próximo da relação com o teatro que eu pratico. Assim, os atores são atores-criadores. Tudo é muito compartilhado e discutido”.
Além disso, Alves Jr. também falou de um processo de criação diferente de muitos filmes. Ele contou que fez uma primeira filmagem em que as atrizes improvisavam cenas com temas livres. Depois de montar esse material e estudá-lo, eles reescreveram as cenas e voltaram ao set de filmagens para gravar tudo de forma mais completa e estruturada.
“Com isso, a gente conseguia chegar no coração de cada cena. Pegar uma improvisação que estava dando dez minutos anteriormente e depois condensar aquilo em dois minutos, por exemplo. Esse foi o método processual do filme e pouco tradicional”, contou o realizador.
Também por conta disso, Alves Jr. descarta a ideia de um filme que se poderia chamar de puramente documental em que se busca saber o que é ou não verdade na vida pessoal de cada uma. “Não é uma espécie de falso documentário em que temos atores não profissionais vivendo suas vidas. Não, elas são atrizes e têm consciência da construção ficcional que estão realizando”, complementou.
Cinema de afeto
No campo temático, Tudo o que Você Podia Ser filia-se a um cinema queer que busca destacar as vivências e subjetividades de pessoas da comunidade LGBTQIA+. Faz isso a partir da chave do afeto, em contraponto a um tipo de tendência histórica de enquadrar esse tipo de personagem sempre pelo viés da violência, do sofrimento e do preconceito.
“O primeiro gesto do filme é colocar as personagens sem ter que justificar o seu gênero. Nenhuma ali tem que ser justificada por ser trans, por ser não-binária, por ser gay. Elas são e existem simplesmente. Depois a gente teve que pensar em como a gente quer representar essa comunidade. E acho que é no lugar de qualquer humano, de qualquer pessoa, que tem as suas questões e desafios de vida”.
Ainda assim, certas violências também aparecem no filme como nuances da realidade. “A gente não pode esquecer que o Brasil é um dos países que mais mata pessoas trans no mundo. Então sim, há violência na cidade, há uma tensão. Isso também tem que estar presente. Mas o nosso ponto é: para onde o filme quer olhar? Quer olhar para outras coisas, para as possibilidades de existir e que essas personagens possam sonhar e ter um futuro”, arrematou Alves Jr.
Sobre a ideia de cinema de afeto – de que tanto se tem discutido ultimamente na produção nacional, com certas críticas e olhares tortos –, o diretor questiona: “Por que essa onda existe no Brasil de agora, um Brasil tão reacionário? Depois de quatro anos de um governo Bolsonaro, depois de uma pandemia, esses filmes não deixam de ser sintoma daquilo que queremos mostrar para a sociedade. Eu sempre quis que esse filme fosse uma sensação de abraço no espectador”.
Tudo o que Você Podia Ser (Brasil, 2023)
Direção: Ricardo Alves Jr.
Roteiro: Germano Melo
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 23/06/2024)