Um Herói

Sem super poderes ou capa*

Dilemas morais, jogos de poder, enredos de mentiras que vão se sucedendo e virando bolas de neve, personagens que não conseguem escapar das armadilhas do destino. Esses são alguns dos lances narrativos que temos encontrado nos filmes do cineasta iraniano Asghar Fahadi há algum tempo (desde sempre, talvez).

Pois este é o caso também de Um Herói, novo longa do cineasta que saiu do penúltimo Festival de Cannes com o Grande Prêmio do Júri (espécie de segundo lugar na corrida pela Palma de Ouro). Desde que venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim com o maravilhoso A Separação (2011), e com o mesmo filme ganhou o Oscar de Filme Estrangeiro (além de ter ganho outro Oscar nessa mesma categoria por O Apartamento, em 2017), Fahadi ganhou projeção internacional e lugar cativo nos grandes festivais e círculos cinéfilos.

O cinema de Farhadi não passa mais despercebido aos holofotes, assim como suas tramas e histórias não deixam de apresentar enredos que, na sua estrutura, têm se repetido um tanto, apostando em fórmulas já repetidas. Haveria de se dizer que seu cinema já se encontraria desgastado, mas Um Herói é um grande exemplo de como é possível fazer um ótimo filme sem necessariamente abdicar dos elementos que o consagraram e tornaram suas obras reconhecíveis.

Na trama, Rahim (Amir Jadidi) está acabando de cumprir uma pena na prisão porque devia dinheiro a um homem poderoso (as coisas no Irã não são mesmo fáceis para quem sai da linha). Ele já está na fase em que pode fazer saídas temporárias para visitar a família e também encontrar com a moça (Sahar Goldust) com quem pretende se casar assim que sair da cadeia.

Numa dessas saídas, ele encontra uma bolsa com moedas de ouro. Ao invés de pegar o dinheiro para si, resolve procurar o verdadeiro dono para devolver a grana – e, quem sabe, ganhar notoriedade com isso. Ele conta com o apoio da sua futura noiva (de quem o irmão é contra aquele relacionamento) e da própria família: sua irmã, o marido desta e seus sobrinhos.

Moral torta

Mas que o espectador não se engane, esse é apenas o ponto de partida da história, e mesmo assim ele não é tão claro assim – logo saberemos que não foi Rahim quem encontrou a bolsa de dinheiro, e sim sua noiva; também vamos descobrir que ele primeiro tentou trocar o ouro por dinheiro, mas como o valor não era tão bom, mudou de estratégia. A bola de neve ainda tem muito a girar e a crescer.

Farhadi vai nos dando essas informações aos poucos, à medida que o filme transcorre e os personagens andam de um lado para o outro a fim de resolver seus problemas. Rahim não quer apenas conseguir o dinheiro para deixar a cadeia, mas quer sair dali com dignidade, ter o perdão do credor que lhe colocou na prisão e, consequentemente, poder conseguir um bom emprego para depois se casar.

Nos filmes do cineasta, tais dimensões morais e sociais são muito importantes para entendermos os personagens e os movimentos que eles fazem, cada vez mais enredados em tramas complexas, apanhados de surpresas por escolhas nem sempre as mais acertadas que acarretam em mais e mais problemas. É o modelo narrativo a que o diretor se habituou (o roteiro também é escrito por ele), tendo como bússola moral um padrão de comportamento reconhecido publicamente no Irã.

A diferença aqui em relação aos seus filmes anteriores (mais especificamente sobre Todos Já Sabem, longa um tanto quanto desastroso, filmado na Espanha) é que o drama de Rahim é muito mais equilibrado e embasado pelas posições coerentes que aqueles a sua volta tomam, nem sempre a seu benefício. É também um personagem em nada maniqueísta, cujas atitudes tanto podemos criticar ou como aprovar.

Ele está querendo fazer o seu melhor para sair daquela situação, mas nem sempre da forma mais correta. O filme nunca o julga por isso, mas o mesmo não se pode dizer de muitos dos demais personagens. O desempenho do ator Amir Jadidi ajuda muito a criar esse tipo muito crível, sujeito de boas intenções que luta contra as forças contrárias sem querer parecer mais digno por isso (ele também nunca se aproveita para soar “coitado”). O próprio título do filme possui uma ironia escondida porque o herói da história está repleto de falhas humanas.

Driblando a censura

Farhadi trabalha claramente em uma chave realista/naturalista, como boa parte dos seus colegas de profissão no Irã (tradição que vem de longa data, com nomes como Abbas Kiarostami e Jafar Panahi). Mas o seu cinema passa ao largo das grandes questões sociais e políticas do país, uma vez que a censura no Irã já levou muito diretores a se exilarem e também para a cadeia (como foi o caso clássico de Panahi).

Isso não significa que cinema de Farhadi esteja esvaziado de uma dimensão política. Muito pelo contrário, ela se revela nas relações entre os personagens e nos dilemas que esbarram nos preceitos de dignidade e hombridade da sociedade iraniana atual. Sociedade esta que cobra padrões de comportamento, mas pouco ajuda quando os sujeitos estão em situação limite.

Farhadi joga com a essa estrutura e a utiliza a seu favor para criar tramas em que os conflitos pessoais e mesmo íntimos daqueles personagens reflitam uma sociedade cercada de regras moralistas e normas de conduta enraizadas. É dessa malha social cheia de meandros e nuances um tanto difusas que é feito o seu cinema.

No caso de Um Herói, o trunfo é maior porque aqui ele consegue fazer o equilíbrio entre o macro (a sociedade iraniana) e o micro (o drama de Rahim) de modo muito discreto e sutil, potencializando cada um deles. É certamente seu melhor filme desde A Separação, com quem compartilha esse mesmo tipo de jogada narrativa, uma mesma capacidade de se acercar dos dilemas humanos universais, mesmo falando de sua própria aldeia.

Um Herói (Ghahreman, Irã/França, 2021)
Direção: Asghar Farhadi
Roteiro: Asghar Farhadi

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 31/07/2022)

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