Câmera como arma*
Em 2004, a idosa de 80 anos Joana Zeferino da Paz foi peça fundamental para que a polícia do Rio de Janeiro desmontasse um esquema de tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana. Isso porque ela filmou as movimentações entre traficantes e a população já que a janela de sua casa ficava de frente para a entrada do morro onde os bandidos viviam armados e comercializavam drogas dia e noite.
Testemunha constante de tiroteios, que chegaram a atingir o interior de sua casa, dona Joana era parte da vizinhança que, amedrontada, convivia com o medo e o risco de morte até que resolveu agir com indignação. Após denunciar várias vezes o caso à polícia que reagia com apatia às queixas da idosa, ela resolveu comprar uma pequena filmadora e passou a gravar, de sua janela, os passos e atitudes dos bandidos à frente.
Essa é a trama de Vitória, novo filme de Andrucha Waddington, já em cartaz nos cinemas brasileiros. Fernanda Montenegro é quem dá vida a essa senhora aparentemente frágil, mas ainda ativa e consciente. Solteira e solitária, vive uma vida que só não é mais pacata por conta do risco que corre ao ver crescer a comunidade controlada pelo tráfico de drogas praticamente à sua porta.
Tendo ganhado a vida como doméstica e, mais atualmente, como massagista, ela tem poucos amigos, até mesmo dentro do prédio onde mora. Passa a fazer amizade com uma nova moradora que se muda para o apartamento ao lado, Bibiana (Linn da Quebrada), além de ter boa relação com as crianças do bairro, incluindo um garoto que vive na comunidade em frente.
Outro contato fundamental para que o caso ganhasse repercussão nacional foi com o jornalista Fábio Gusmão (interpretado por Alan Rocha, cujo personagem recebe o nome de Flávio Godoy, afim de preservar sua identidade) do jornal Extra. É ele quem vê a senhora repetidamente na delegacia e acaba descobrindo as muitas fitas de vídeo que ela gravava e que a polícia ignorava.
Bem contra o mal
O filme recebe esse nome, pois desde que a polícia aceitou as denúncias e começou a investigar o caso com seriedade, a senhora teve de sair do Rio de Janeiro e assumir outra identidade, passando a se chamar Vitória, como parte do Programa de Proteção à Testemunha. Ela, inclusive, viveu os seus últimos dias em Salvador, depois de ter de abandonar toda a sua rotina de vida no Rio. Apenas em 2023, quando ela faleceu, que sua verdadeira identidade pode ser divulgada publicamente.
A trama constrói, portanto, o retrato dessa mulher de fibra, acuada pelas circunstâncias, mas que decide fazer algo para enfrentar a situação, mesmo diante da apatia da polícia – depois saberemos que um grupo de policiais militares estava envolvido no esquema do tráfico naquele ponto específico.
O filme todo pertence a Montenegro e, de fato, como a grande atriz que o Brasil aprendeu a admirar e respeitar, ela confere muita dignidade ao papel, em uma atuação de entrega e vigor, pela própria energia de enfrentamento que a verdadeira Joana da Paz tinha, ainda que sem se exceder – grande parte de suas ações de registro daquelas imagens é feita na surdina e sem alarde.
O roteiro é hábil em arejar uma história de heroísmo latente ao criar um embate de forças desproporcionais, tipo Davi versus Golias, fazendo o espectador estabelecer uma relação de identificação imediata com essa mulher e sua luta contra o tráfico. Daí que certas situações parecem embaladas para estampar uma luta do bem contra o mal, em que dona Nina, como é chamada no filme, enfrenta a tudo e todos, munida de seu senso de Justiça e sua filmadora portátil.
Não sobram muitas nuances para a personagem para além da idosa de boa alma, desacreditada por quase todos. Ela nem mesmo vacila diante das recusas que recebe, seja para a polícia aceitar suas denúncias ou mesmo quando todos os vizinhos na reunião de condomínio se opõem ao vê-la levando uma criança da comunidade, claramente sob efeito de drogas, para dentro de seu apartamento. Para o filme, suas atitudes são sempre inquestionáveis.
Há uma cena em que ela é levada para o morro na mira de uma arma, mas por um motivo muito diferente do que imaginamos, com propósitos de humor em meio a todo aquele cenário. É, portanto, um risco calculado o que ela enfrenta a partir do momento em que passa a fazer as filmagens.
Aposta e despedida
Depois do grande sucesso de Ainda Estou Aqui, protagonizado pela filha Fernanda Torres e com uma participação da própria Montenegro, Vitória é a mais nova aposta do cinema nacional para levar o público às salas – não à toa lançado agora pós-ressaca do Oscar quando o filme de Salles ainda permanece em cartaz em muitas cidades.
O diretor Andrucha Waddington, aliás, é marido de Torres e genro de Montenegro, e teve de substituir o diretor original do projeto, Breno Silveira (conhecido por ter feito Dois Filhos de Francisco), depois que este faleceu por complicações de um infarto sofrido em 2022 quando tinha iniciado as filmagens de Vitória.
Essa é também uma espécie de despedida não formalizada de Fernanda Montenegro das telas do cinema. Aos 95 anos de idade, a atriz tem dito em aparições recentes para promover o filme que este deve ser seu último trabalho nos cinemas por conta do grande esforço físico e mental que o audiovisual requer.
O filme coroa uma carreira brilhante e que, nos últimos anos, tem sido voltada para papéis pequenos – seu último grande destaque no cinema foi em Piedade, de Cláudio Assis. Além disso, há um polêmica em torno de Vitória por Montenegro interpretar uma senhora negra na vida real.
A equipe artística do filme preferiu usar atores com características físicas distintas de suas personas reais – algo que também acontece com outros personagens – a fim de evitar identificações fáceis, além de que poucas pessoas conheciam a real identidade de Joana antes de sua morte. Efetivamente, isso não desmerece o trabalho de Montenegro que prova mais uma vez ser a dama da dramaturgia no Brasil e uma de nossas maiores atrizes.
Vitória (Idem, Brasil, 2025)
Direção: Andrucha Waddington
Roteiro: Paula Fiuza e Fábio Gusmão
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 15/03/2025)