Sobre homens e monstros

Leviatã (Leviathan, Rússia,
2014)
Dir:
Andrey Zvyagintsev
De
dureza parece viver uma parte do cinema russo recente. Podemos pensar aqui
nos trabalhos-pancada de um Sergei Loznista, por exemplo. Leviatã é
mais um exemplar de porrada bem dada no espectador, apesar de o fazer com certa
elegância, mas sem concessões a seus personagens. O filme de Zvyagintsev,
prêmio de roteiro no último Festival de Cannes, é rígido e bravio tal qual a
própria região onde os personagens circulam.
O
mecânico Kolya (Aleksey Serebryakov) vive com sua família numa região ao norte
da Rússia, lugar que o prefeito da cidade (Roman Madyanov) quer desapropriar
para construir um centro de comunicações. Não se engane pensando que se trava
aqui uma luta de desiguais, o poder público contra o pobre civil. No fundo há
isso também, mas o protagonista está longe de assumir a postura de cidadão
exemplar oprimido pelo Estado.
Kolya
carrega o traço da brutalidade em seu dia a dia, homem de modos rudes tanto na
forma de lidar com os negócios e a ação de despejo que sofre da prefeitura, quanto no tratamento ao filho do primeiro casamento e a nova esposa. A família vive uma
espécie de relação endurecida, ainda que seja possível flagrar ali certo companheirismo
– apesar da esposa parecer se distanciar cada vez mais.
O embate com a administração pública se dá de forma mais calorosa
possível, o grito e a violência sendo a principal arma para resolver os
conflitos, de ambos os lados (e a bebedeira como fuga). Soa tão natural para
aqueles personagens agir dessa maneira que exala daí até mesmo certo senso de humor em alguns momentos – o piquenique nas montanhas é um exemplo evidente.
Mas nada que desvie a atenção da natureza brutal dessas pessoas e dessa
história sem concessões.
Certamente
que as representações do Estado e sua soberania autoproclamada tratam de
esmagar seus opositores. Aqui, instituições como a justiça e religião marcam
presença forte como norteadores do destino das pessoas, com sua moral oblíqua a
serviço dos mais poderosos. Há um cinismo ácido nas palavras do padre cristão
ortodoxo que sabe muito bem o que espera Kolya, enquanto os entraves judiciários
que o protagonista enfrenta estão claramente contra ele – a juíza lendo a decisão da
corte como se metralhasse o homem com sua oratória ininterrupta e seca é uma das
imagens mais contundentes do filme.
Kolya,
mesmo repleto de defeitos morais, é a pedra no sapato que se torna a vítima
oprimida, ainda que ninguém use (ou queira usar) a máscara da inocência. Os
desdobramentos para seu desajustamento comportamental só fazem complicar sua
situação, assim como destroçam a vida de todos ao redor. O roteiro sabiamente
omite certas resoluções, mas deixa o rastro de uma tragédia cuja
responsabilidade recai fortemente sobre o poder do Estado, a mãe Rússia vista sem compaixão.
Existe
ainda um comentário implícito que coloca as crianças e jovens do filme em
situação vulnerável. Brincam com armas e presenciam atos violentos, são testemunhas
inocentes de um mundo delinquente e vil, mas exemplares a seus olhos (algo que
já estava no longa anterior do diretor, Elena,
e também em O Retorno, seu premiado
primeiro filme). 

Evocando
o monstro bíblico Leviatã que nenhum homem é capaz de enfrentar e destruir, Zvyagintsev
discute o destino inexorável daqueles que se contrapõem a algo maior, impiedoso
e cruel. O diretor filma com rigor e precisão não só esses embates, como também
a natureza inóspita que parece observar o implacável choque de força dos
homens.

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