Olhar de Cinema: Letra Maiúscula

O cinema romeno (ou aquilo que nos chega aqui, filtrado pelos festivais) parece deter uma capacidade muito coesa em uma série de filmes ao abordar e tensionar a História recente de seu país. Muitas outras cinematografias fazem isso, em menor ou maior grau e qualidade no resultado final (os argentinos e os gregos, por exemplo), mas os cineastas romenos conseguem ainda propor modos muito inventivos e cinematográficos para tal. Um dos grandes nomes dessa geração, imbuído nesse trabalho de revirar e enfrentar a memória da Romênia e seus fantasmas ditatoriais do passado, é Radu Jude. Um de seus filmes mais recentes (ele já tem outro, o documentário A Saída dos Trens, a ser exibido na Mostra SP), Letra Maiúscula, segue um caminho muito peculiar ao narrar o caso do garoto Mugur Calinescu que, aos 21 anos de idade, no ano de 1981, foi considerado subversivo por fazer pichações nas paredes denunciando as arbitrariedades do regime ditatorial de Ceausescu.

O rapaz ousou fazer inscrições nas paredes da cidade provinciana onde morava com pedidos de justiça e liberdade, apontando até mesmo tendências democráticas que países do leste europeu, como a Polônia, possuíam nas suas instâncias sindicais. Mugur foi identificado como autor dos dizeres, foi perseguido pela Securitate, a polícia secreta romena, e teve fim trágico. Qualquer diretor poderia fazer um documentário elucidativo e didático sobre o caso ou uma ficção convencional, mas Jude faz escolhas narrativas no mínimo curiosas, muito acertadas e potencializadoras de uma história que não é necessariamente um grande caso na Romênia; Mugur não chega a ser considerado um herói nacional e sua história só veio a público há poucos anos.

Com isso, e baseado numa peça de teatro escrita por Gianina Carbunariu (também creditada aqui como roteirista), Jude experimenta: primeiro porque compõe uma espécie de dramatização farsesca; e depois ao intercalar a trama da perseguição com uma série de imagens de arquivo, todas da televisão romena (e imagino que daquela mesma época), aparentemente aleatórias, mas que dão conta, inicialmente, de contextualizar, mas não só. O diretor já havia lidado com a dimensão da encenação no filme Eu Não me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros, produto ao mesmo tempo irreverente e pesado sobre o passado fascista do país, em torno de uma diretora que deseja apresentar, em data comemorativa cívica, uma peça teatral sobre a morte criminosa de judeus em um incêndio chancelado pelo Estado durante a Segunda Guerra.

Já aqui, toda a reconstituição dos fatos têm base nos documentos oficiais da polícia secreta, relatórios das observações policiais e ainda as escutas que foram implantadas na casa da família Calinescu, um farto material usado como roteiro. Em cena, em meio a um cenário artificial e antinaturalista, os atores dão corpo aos seus personagens de forma desdramatizada, ditam seu texto diretamente para a câmera, tal como autômatos que reprocessam palavras oficiais.

É em meio a esse dispositivo um tanto sofisticado e frio, distanciado, que Letra Maiúscula revela seu tom sóbrio e sério, fugindo de psicologismos e promovendo uma reconstituição apegada aos fatos registrados, nunca inventados. O uso dos arquivos secretos, reproduzidos com clareza e certa minúcia nos diálogos e falas dos personagens, demonstra não apenas o cuidado do realizador com os detalhes do caso e o que isso pode deflagrar como denúncia de abuso das forças do Estado, mas revelam também a capacidade de controle e vigilância da máquina estatal do regime comunista romeno. Em certo sentido, isso faz lembrar o documentário brasileiro Retratos de Identificação, de Anita Leandro, contundente caso em que os relatórios oficiais do regime militar, sobre uma dada militante brasileira, eram usados não apenas como documentos ilustrativos, mas sobretudo narrativos, na medida em que eles dão conta de pormenorizar os passos e trajetórias dos indivíduos, o que por si só já autodenuncia a perseguição e violência sofridas pelos opositores da ditadura.

No caso de Mugur, o jovem é menos um militante no sentido lato do termo, alguém que resolveu entrar para o quadro da resistência opositora como grupo minimamente organizado, e sim um rapaz que, ouvinte de uma rádio clandestina de Londres, se imbuiu dos ideais libertários e democráticos, juntou coragem para expor suas ideias da maneira que lhe pareceu viável e cabível. É curioso como o próprio filme consegue apontar para tal trajetória sem necessariamente tomar partido do garoto, defendê-lo ou mesmo vitimizá-lo, para além do próprio gesto de conferir dignidade e consideração por sua maneira de resistência que é a própria realização deste filme.

Por sua vez, os materiais de arquivo da TV romena, interpostos ao caso narrado, de formatos e temas diversos, somam outras camadas ao filme e ao propósito maior do diretor e de muitos de seus colegas conterrâneos que é o de averiguar a caixa preta do país. E essa é outra escolha arriscada porque tais imagens nunca são explicadas ou contextualizadas nos seus detalhes e origens, mas são capazes de apontar para um estado de coisas passíveis de compreensão, mesmo para um não romeno, ou antes redimensionam-se como um interposto histórico naquilo que revela em sutileza e desenho de uma época (o mesmo tipo de recurso e estratégia explorados em A Nação Morta, também de Jude).

Elas podem ser uma reportagem sobre um decreto do governo que penaliza motoristas que buzinarem sem necessidade no trânsito, cenas de uma peça de teatro ou a apresentação de uma cantora num estúdio, todos apelando para um tipo de ressignificação que age no imaginário do espectador, sem didatismos. Outras cenas são mais objetivas, como as de uma reportagem que renuncia o deficitário estado da educação pública no país. Sendo Mugur um jovem estudante, mal visto pelos seus próprios professores, entender essa precarização ajuda a compor um retrato de país em que as pequenas histórias, as que se querem escondidas e enterradas, escancaram as opressões mais vis e invisibilizadas.

Letra Maiúscula (Tipografic Majuscul, Romênia, 2020)
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude e Gianina Carbunariu

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