Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu

À beira do fantástico / Conto familiar*

Se a pecha do realismo é uma constante no cinema brasileiro enquanto representação social do país – herança forte do Cinema Novo que permanece viva até hoje, reconfigurada para os novos tempos –, é cada vez mais perceptível dentro da filmografia nacional recente o uso e apropriação do fantástico e da fabulação nas tramas.

Não são necessariamente obras que mergulham de cabeça no gênero – apesar de haver muitos desse tipo no cinema brasileiro –, mas em alguns exemplares é como se o fantástico fosse uma possibilidade narrativa que estivesse sempre à espreita e, em alguma medida, pudesse interferir nas histórias. É o caso de Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu, dirigido por Bruno Risas.

O filme faze parte de um subgênero, se assim podemos dizer, que vem fazendo sucesso no cinema brasileiro: os filmes de família. Mais precisamente as tramas em que os diretores filmam a si mesmos e suas famílias, seu cotidiano doméstico, geralmente num híbrido entre documentário e ficção. Faz par com filmes recentes como Vermelha, de Getúlio Ribeiro, ou Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira, para citar apenas alguns exemplos.

No caso de Bruno, ele capta sua mãe, pai, irmã e avó momentos depois do pai perder o emprego, o que obriga a família a ir morar numa antiga casa, menor, onde eles já haviam vivido antes, enquanto Bruno, já casado, mora em outra casa. Mas todo dia ele vai lá filmar sua família. É dessa observação íntima e também participante – ele é um personagem do filme tanto quanto os demais – que o filme faz antever algo fora do comum.

Há uma linha de sinopse que dá conta de informar que a mãe, em algum momento, foi abduzida por seres alienígenas. Ela faz os trabalhos domésticos, mas de repente, em certos momentos, parece obcecada e atraída por alguma coisa incomum no céu. O filme alcança o tom fantasioso principalmente através do uso do som a indicar algo estanho ao redor daquela casa, daquela família.

Ainda assim, o mais curioso e forte no filme é a variação entre o que é captação espontânea da família ou puro exercício de ficcionalização. O filme brinca com isso o tempo todo. Em alguns momentos a voz de Bruno ecoa dando ordem para os demais, como se os estivesse dirigindo em cena, indicando o que fazer e falar; em outros, de maior tensão e briga, ficamos na dúvida se aquelas conversas foram mesmo captadas pela câmera espontaneamente ou se são encenadas.

Mas vejam, o filme passou – e foi premiado – este ano no Cinema du Réel, na França, um dos principais festivais de cinema documentário do mundo, o que mostra o quanto essas fronteiras entre o real e o ficcional estão cada vez mais embaralhadas. Na verdade, elas sempre estiveram, mas atualmente existe maior liberdade para brincar e exercitar esse hibridismo. Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu pode ser visto na Netflix.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (Idem, Brasil, 2019)
Direção: Bruno Risas
Roteiro: Bruno Risas, Maria Clara Escobar, Viviane Machado e Julius Marcondes

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 11/10/2020)

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