Sobre seguir em frente*
O ator e diretor de teatro Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é convidado a tomar à frente de uma nova encenação da peça Tio Vânia, de Tchecov, num teatro de Hiroshima, longe da cidade onde mora. Ele fica hospedado numa vila perto da cidade e todos os dias faz o trajeto em seu próprio carro. Mas, para evitar acidentes, a companhia de teatro contrata um motorista para guiar os diretores que podem fazer a viagem descansados. No caso de Kafuku, ele gosta de ouvir os diálogos gravados da peça enquanto faz o percurso.
É daí que vem o título Drive My Car (algo como “dirija o meu carro”), novo filme do diretor japonês Ryûsuke Hamaguchi, baseado em um conto homônimo do famoso escritor Haruki Murakami (publicado no livro Homens sem Mulheres). Mas o filme de Hamaguchi possui muito mais camadas do que essa que se apresenta nessa possível sinopse, dadas as diversas variáveis que perpassam pela vida do protagonista.
Hamaguchi compõe aqui um drama complexo, versando sobre temas como luto, solidão e as pulsões da criação artística, a partir de uma estrutura dramática aparentemente simples na forma como ela se apresenta, mas cheia de nuances e pequenos detalhes de trama que vão sendo revelados aos poucos. O próprio filme possui um ritmo bem cadenciado, sem pressa ou atropelos, ao longo de três horas de duração que passam como mágica, talento dos grandes encenadores.
O diretor japonês vive uma ótima fase na carreira, aliás. Há pouco tempo, lançou outro longa-metragem, Roda do Destino, um filme em três episódios em que o cineasta revela o mesmo apuro de direção e o mesmo tratamento complexo e cuidadoso para os dramas de seus personagens. Com Drive My Car, ele conseguiu o feito de romper a linha dos filmes estrangeiros no Oscar e, além da indicação na categoria dos internacionais, concorre ainda em Roteiro, Direção e Melhor Filme.
Ambos os filmes já vieram premiados de grandes festivais em 2021: Roda do Destino venceu o Grande Prêmio do Júri, no Festival de Berlim; já o mais novo longa foi agraciado com o prêmio de roteiro no Festival de Cannes (adaptação feita ao lado do roteirista Takamasa Oe). Não é pouca coisa o reconhecimento que Hamaguchi vem conquistando ultimamente, e é mais do que merecido para um cineasta que filma de modo clássico, sem invencionices técnicas, e alcança camadas profundas nas histórias que conta.
O pulso criador
Contar histórias, aliás, é um ponto central que faz girar a engrenagem de Drive My Car (e com isso, entende-se não apenas quem escreve as histórias, mas também quem as encena e atua nelas). Hamaguchi traz para a roda autores de gerações distintas – Tchecov e Murakami, cada qual com suas particularidades artísticas, exímios contadores de histórias.
Mas uma peça chave nessa engrenagem é a esposa de Kafuku, Oto (Reika Kirishima). Ela era também uma atriz de teatro que, após um bloqueio, passou apenas a escrever roteiros de peças. Com um toque de excentricidade, à lá Murakami, a inspiração dela só vem após o ato sexual, e o marido é quem escuta e discute com ela as ideias para as histórias que ela cria.
A relação entre marido e mulher, portanto, ganha nuances muito ricas porque se misturam a intimidade e a vida profissional, ambos permeados por segredos e certos comportamentos estranhos (e talvez questionáveis) de cada lado. Isso é só a ponta do que faz Drive My Car uma história única e pouco previsível, por isso mesmo muito interessante de acompanhar.
Um acidente fatídico lançará o protagonista numa espiral de conflitos internos em que ele precisará repensar a sua própria vida e carreira – talvez por isso mesmo ele aceite o novo trabalho numa cidade mais distante. O deslocamento geográfico do protagonista reflete o seu próprio anseio por novos ares, e um novo mundo de relações se desenha para ele.
No novo trabalho, Kafuku precisa lidar com uma gama de novos atores (gente, inclusive, de países distintos que falam outras línguas, até mesmo uma mulher muda que se comunica por linguagem de sinais), que vai encenar a peça sob sua direção. Ele se recusa a aceitar o papel de protagonista do texto de Tchecov – Tio Vânia, aliás, é um personagem que lida com o envelhecimento e com os arrependimentos sobre cosias que não conseguiu concretizar na vida.
Olhar para trás
Kafuku vai reencontrar ali um jovem ator conhecido de antes (interpretado por Masaki Okada), que também conheceu a sua esposa e com ela teve uma aproximação mais que profissional. Entre eles emerge uma relação de tensionamentos e entendimentos que intensificam passado e presente.
Outro elo importante que ele faz é com a jovem Misaki (Tôko Miura), sendo ela a motorista contratada para levá-lo e trazê-lo. Primeiro ela é vista com certa recusa por parte de Kafuku, mas logo a relação dos dois evolui para algo perto da cumplicidade, a partir do momento em que ela revela também os seus próprios dramas e cicatrizes do passado.
É a partir dessa estrutura de correlações que Drive My Car caminha por muitas veredas e debates distintos. O filme nunca revela de cara aonde quer chegar e quais serão os próximos passos, apenas segue seu protagonista enquanto ele precisa investigar internamente seus fantasmas – e lidar com as surpresas do dia a dia.
Ao mesmo tempo, nada no filme é confuso ou desordenado, devido à forma cristalina com que Hamaguchi dirige e orquestra as muitas nuances que ele convoca para essa história. Aos poucos, os dramas e os detalhes de cada personagens vão tomando seu devido lugar, ganhando forma e, até o final, o filme apara as arestas, tornando-se uma grande reflexão sobre o luto e sobre a necessidade de seguir em frente, apesar dos pesares, mesmo que pare isso seja necessário olhar para trás.
Com isso, Hamaguchi prova que é um mestre dos dramas pessoais. A clareza dos seus filmes esconde a complexidade das atitudes e comportamentos dos indivíduos, com seus mistérios e pontos cegos. O cineasta japonês é, sem dúvida, um dos grandes diretores contemporâneos a revelar tão bem as profundezas, fragilidades e potências da alma humana.
Drive My Car (Doraibu Mai Kâ, Japão, 2021)
Direção: Ryûsuke Hamaguchi
Roteiro: Ryûsuke Hamaguchi e Takamasa Oe
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 20/03/2022)