Alemão 2 / Entrevista com José Eduardo Belmonte e Digão Ribeiro

O inimigo ainda é o mesmo*

A “pacificação” do Complexo do Alemão, conjunto de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, completou dez anos em novembro de 2020. À época, a ação policial foi considerada uma das maiores operadas pela polícia do Estado do Rio e tinha o objetivo de acabar com o comando dos líderes do tráfico de drogas na região, além de oferecer segurança e bem estar social para os moradores da periferia.

A consequente implementação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) já era muita discutida naquele momento, tema gerador de muitas divergências, e mesmo depois de alguns anos de funcionamento, sua presença na comunidade ainda é relativizada e debatida. O longa-metragem ficcional Alemão (2014), situado poucos dias antes da deflagração da operação policial, já trazia uma série de discussões sobre o caso, esbarrando no vespeiro que é a situação política e social que envolve a operação.

Agora, oito anos depois, o cineasta José Eduardo Belmonte retorna ao projeto que já havia dirigido antes para dar continuidade ao debate em Alemão 2. O filme inicia no mesmo ponto em que o anterior acabava – com a “tomada” da favela pelas forças policiais, expulsando os líderes do tráfico –, mas também salta no tempo para mostrar que anos depois as coisas não mudaram tanto assim.

“Eu tinha vontade de aprofundar, de dar outros pontos de vista, de entender mais esse tema”, conta o cineasta José Eduardo Belmonte, que conversou com A TARDE sobre o filme. Ele confidencia que o projeto da sequência já existia mesmo antes da data de “comemoração” dos dez anos da operação, mas foi sendo adiado por conta da dificuldade de conciliar a agenda do elenco. “Além disso, a realidade das UPPs mudava numa velocidade muito grande e com isso os roteiros tiveram que ser mudados várias vezes”, confidencia.

Apesar do contexto histórico ser diferente – o novo filme se passa em 2018, ano das eleições presidenciais de Jair Bolsonaro –, a trama do filme segue estrutura similar ao anterior: quando uma equipe policial fracassa na missão de capturar um novo líder do tráfico no Alemão, corre-se contra o tempo para resgatar os policias que acabam ficando sitiados dentro da favela.

Belmonte conta também que sempre teve em mente de que se tratava de um filme de caráter popular: “Essa já era uma proposta dos produtores, de fazer um filme popular que fala para muita gente. Eu fui muito persistente no projeto e achei que era importante aprofundar o tema da segurança pública dentro de um filme de ação como esse”, afirma o diretor.

Complexo de gente

Se esse tipo de abordagem – uma trama policial à serviço das discussões sobre segurança pública e o uso da força policial nas comunidades – parece muito devedora das portas que Tropa de Elite abriu para esse tipo de produto cinematográfico, é interessante notar como Alemão 2 avança ao criar uma gama de personagens que, mesmo estando sob a égide de uma mesma legenda (no caso “policiais” ou “bandidos”), acabam por revelar personalidades complexas e formas de pensamento divergentes.

Dentro da polícia, a própria ideia de uma operação sem uso da violência, com base em estratégias de inteligência, não é tão bem aceita por todos, apesar da delegada (Aline Borges) acreditar nisso e levar adiante a operação. Machado (Vladimir Brichta) lidera o cerco com o intuito de fazê-lo da forma mais equilibrada possível, mas ele vai ficar de frente com o novo líder da área, Soldado (vivido por Digão Ribeiro), com quem já teve um embate no passado.

Entre os policiais mais novos, Ciro (Gabriel Leone) esnoba aquela operação, que para ele é mais uma dentre tantas, enquanto a novata Freitas (Leandra Leal), ainda que tomada de nervosismo, possui uma visão mais ampla da situação.

O personagem de Digão também apresenta as suas nuances, isso porque Soldado não é o único que quer controlar o tráfico e, consequentemente, a própria comunidade: ele possui uma rixa interna com Parnau (Demick Lopes), outrora amigos e que agora vivem em lados opostos, tentando conquistar um lugar de destaque dentro da favela que não é mais a mesma, “livre” da bandidagem – e talvez nunca tenha estado.

Digão também conversou com o A TARDE sobre o filme e a composição do seu personagem: “A construção do Soldado vem num lugar de descobrir outras camadas, fazendo com que esses personagens sejam mais profundos”, revela o ator. “Estamos falando de um corpo preto dentro de uma realidade que a gente já conhece e que não muda. A sociedade impõe que essas pessoas nasçam e cresçam dentro das comunidades, com pouco incentivo para sair dali, ocupar outros espaços, a ser mais presente em outros lugares da cidade”, complementa.

O inimigo persiste

Alemão 2 trabalha nas entrelinhas para fazer com que tais debates possam florescer a partir da trama do filme, calcada na tensão e nos planos de fuga dos policiais. Em alguns momentos, a trama passa uma sensação genérica de um filme policial que poderia acontecer em qualquer favela do Brasil, uma vez que as discussões sobre as atividades da polícia e os movimentos feitos por debaixo dos tapetes a guiar muitas delas são bem generalizadas.

Fica evidente que, apesar dos rodeios que o filme faz e das muitas nuances por ele apresentado, o inimigo – o tal do sistema – é muito mais forte e perverso do que as forças de vontade individuais, inseridos também dentro da própria polícia, como já sabemos que acontece. Também o debate sobre o processo de pacificação e a ocupação policial no Alemão continua visível nesse processo. E hoje, há mais clareza sobre o que de fato aconteceu.

“A principal mudança é que caiu a fantasia sobre essa política de segurança pública baseada na militarização, feita há tanto tempo. Ela funciona? Quem é que ganha com essa violência?”, questiona o cineasta. Digão é ainda mais enfático: “O filme vem de uma proposta real de conseguir desmascarar que este é um projeto falido, usado para poder maquiar a cidade para os grandes eventos que a gente viria a sediar”, pontua, referindo-se à Copa do Mundo e às Olimpíadas.

Belmonte filma com competência uma trama que passa por muitas nuances, muitos personagens com ambições e pontos de vista distintos e ainda tem de dar conta de um ritmo que faça jus a um filme de ação. No filme anterior, alguém afirmava: “Não existe heroísmo na polícia”. Nem heróis, nem mocinhos, mas os inimigos continuam à solta.

Alemão 2 (Brasil, 2022)
Direção: José Eduardo Belmonte
Roteiro: Thiago Brito e Marton Olympio

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 31/03/2022)

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