A escritora francesa Annie Ernaux já vinha, há um bom tempo, sendo considerada uma das principais autoras contemporâneas, o que se potencializa com o Nobel de Literatura que ela acabou de receber. Mas este ano ela revelou outra faceta sua, dessa vez como cineasta, após ter lançado o longa Os Anos do Super 8, dirigido em parceria com seu filho David Ernaux-Briot.
O filme se compõe de uma série de filmagens em formato super-8 que Ernaux e sua família fizeram entre os anos de 1972 e 1981. Na verdade, quem basicamente filmava era o seu então marido, Philippe Ernaux, depois de terem investido na compra de uma dessas câmeras que tanto se popularizaram naquela época e que renderam uma série de “filmes de família”.
O longa se constrói, portanto, a partir dessas imagens caseiras que registram especialmente Ernaux e seus dois filhos, enquanto Philippe raramente aparece nas imagens. A autora, com seu talento para a prosa, roteiriza a narração que ela mesma faz no filme, seguindo o fluxo das imagens e da memória. Com isso, cria certo retrato de uma geração na França, ainda que marcadamente de classe média alta e intelectualizada – nessa época Ernaux já era professora de Literatura e se preparava para lançar seu primeiro romance, Les Armoires Vide (não traduzido no Brasil).
Os Anos do Super 8 não deixa de englobar o conceito de “autoficção” ao qual Ernaux é associada, já que sua obra literária é marcada por narrativas bastante íntimas e pessoais, incorporando muito intrinsecamente sua própria vivência nos textos. Até mesmo pelo título, é possível relacioná-lo a um dos livros mais famosos da autora, “Os Anos”, em que ela repassa diversas décadas da História política e sociocultural da França a partir da sua própria trajetória pessoal.
É quando a biografia particular das pessoas torna-se história coletiva, pois aquilo que ela retrata nos livros e agora no filme não deixa de representar uma vivência e mesmo o pensamento de uma geração – contextualizada, é claro, pelo seu lugar de fala enquanto mulher branca, rica e intelectual. Essa dimensão personalizada de si, de quem narra essa trajetória, não é necessariamente sublinhada pelo discurso do filme, apenas observável pelos movimentos, comportamentos e reflexões que escapam do filme.
Ernaux tem um grande apreço pelos movimentos da História, e as muitas viagens estrangeiras que ela e sua família fizeram nesses anos demonstram muito bem isso. Da experiência no Chile pré-golpe ditatorial à passagem por países árabes e asiáticos, tudo reforça esse olhar atento para o curso do mundo, filtrado pelo olhar da família da jovem aspirante a escritora, auxiliado ainda pelo recuo histórico que, hoje, faz realçar uma série de percepções sobre a política internacional naquele período.
Nesse sentido, o que o filme nos oferece é um retrato de uma época da maneira mais direta que se pode apresentar. Se na sua obra literária Ernaux tenta fugir de certas armadilhas da autoficção falando de si como se fosse uma terceira pessoa, uma personagem outra que evidencia a sua própria vivência, aqui a escolha se dá pelo inverso, pelo modo mais expositivo de reavivar a memória. As imagens de si e de sua família, acompanhadas pelas reflexões particulares da autora (sempre muito sagazes e afiadas) deixam em evidência a primeira pessoa, fazendo dessa observação do estado de coisas no mundo muito mais personalizado e menos como visão coletivista.
Trata-se de uma opção narrativa que, além de romper certas expectativas por essa linha discursiva à qual Ernaux está associada – e seria ótimo ver isso transposto no cinema –, nivela o filme para se compará-lo com outras obras que fazem o mesmo tipo de arranjo narrativo (imagens de arquivo com narração em off) de tom confessional, que tem sido explorado há bastante tempo no cinema. Ernaux pode até vislumbrar o seu “eu” do passado como outra pessoa de forma diluída no meio de suas reflexões (bem como deve ser curioso para seu filho olhar para a versão infantil de si mesmo), mas Os Anos do Super 8 possui bem menos pretensões do que a prosa escrita da romancista.
Os Anos do Super 8 (Les Années Super-8, França, 2022)
Direção: Annie Ernaux e David Ernaux-Briot
Roteiro: Annie Ernaux