Paloma / Entrevista com Marcelo Gomes, Kika Sena e Ridson Reis

O sonho do matrimônio*

Paloma quer se casar. Paloma vive em Saloá, cidade do sertão pernambucano. Paloma trabalha como agricultora e, no tempo livro, faz bicos como cabeleireira. Paloma tem uma filha de seis anos de idade e um companheiro amoroso. Paloma é uma mulher trans.

Paloma é o novo filme do cineasta pernambucano Marcelo Gomes, que ganha exibição presencial, em Salvador e em Cachoeira, na próxima quinta-feira, como parte da abertura do Panorama Internacional Coisa de Cinema. O diretor e parte do elenco do filme estarão presentes para conversar com o público na sessão em Salvador, no Cine Metha Glauber Rocha.

Exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, depois de ter vencido o prêmio principal no Festival do Rio, além de conquistar o prêmio de atriz para a protagonista Kika Sena (a primeira mulher trans a ganhar um prêmio de atriz no Festival), o filme parte de uma história real que o diretor leu no jornal.

“Faz mais ou menos 10 anos que eu li essa matéria e fique muito emocionado. Era sobre uma mulher trans, no interior de Pernambuco, que deseja casar na igreja de véu e grinalda, e esse desejo promove a ira de uma cidade pequena. Essa história apresentava muitas contradições inerentes à sociedade brasileira: falava de amor e de ódio, de preconceito e de fé, mas falava sobretudo de afeto”, conta o cineasta, que conversou com A TARDE depois de exibir o filme na Mostra de Cinema de São Paulo.

O filme, portanto, tenta ser fiel aos detalhes dessa história – a pessoa da matéria também se chamava Paloma e o caso se deu em Saloá, no interior pernambucano. Gomes quis manter esses elementos, mas construiu também ficcionalmente a história que queria contar para falar desse afeto no país que mais comete violência contra pessoas trans no mundo.

“Eu construí esse roteiro em que existiam redes de afeto para a personagem. Primeiro, a rede familiar, com a ex-mulher da Paloma, a filha e o companheiro; as amigas do bar das primas, uma segunda rede de afeto; e as amigas do trabalho, outra rede de afeto. São os três pilares de construção da Paloma”, afirma o cineasta.

Contradições humanas

O filme constrói muito bem esse ambiente interiorano em que a personagem vive tranquilamente com sua filha e Zé, companheiro por quem é apaixonada (interpretado pelo ator baiano Ridson Reis), apesar da luta diária nos dois trabalhos para manter a família.

As coisas desandam quando ela expressa o sonho em se casar na igreja. “Quando o desejo dela é velado, ela é aceita pela sociedade. Quando o desejo dela é revelado, ela é rechaçada”, pontua o diretor. Mas Paloma não vai desistir fácil e faz o possível para concretizar seu sonho.

Kika Sena também conversou com A TARDE sobre sua preparação para o papel. Ela contou que foi provocada pelo diretor a entender essa personagem antes mesmo de ver o roteiro. “Ele me perguntava: como a Paloma anda, como ela bebe água, como ela varre a casa, que roupas ela veste? Então eu fui construindo a Paloma e só depois ele me questionou: ‘me conta, quem é a Paloma?’. Só depois que eu já tinha noção de quem era essa entidade/personagem, ele me entregou o roteiro”, confidencia a atriz.

É um trabalho luminoso a interpretação que Kika Sena entrega no filme porque a personagem precisa aliar duas dimensões aparentemente contraditórias: ao mesmo tempo em que Paloma é uma mulher muito forte e trabalhadora, o ideal do casamento na igreja é algo muito romântico, sonhador, até mesmo conservador. Mas ela se sustenta pela fé, inclusive na possibilidade de fazer uma romaria para Juazeiro, o que explica muito bem essa determinação interior da personagem.

“Paloma carrega na existência dela as contradições de qualquer ser humano. Não dá pra ser só bom ou mau, ter fé ou não ter. O tempo inteiro estamos carregando dualidades e entrando em confronto com nossas próprias escolhas. Paloma é romântica, mas ela tem o direito de ser romântica e tem o direito de questionar esse romantismo dela, esse sonho, essa fé, o desejo de casar na igreja ou de ter um só marido”, pontua a atriz.

Barreiras sociais

Paloma confronta a sociedade não com uma atitude agressiva ou desrespeitosa – a fé que ela carrega e o apreço pelas tradições ficam bem claras no seu posicionamento. Ela tenta até mesmo escrever para o Papa (ou melhor, ditar uma carta, já que ela não sabe escrever) e pedir uma liberação para se casar na igreja, já que o padre local não aceita realizar a cerimônia – não por desgosto ou desconsideração, mas porque não pode infligir as leis religiosas.

Há uma candura muito cativante dessa mulher na maneira como ela enfrenta as situações e os entraves para a realização do seu sonho. Nesse sentido, o relacionamento com o companheiro Zé é primordial como modo de fortalecer sua luta.

Sobre essa relação, o ator baiano Ridson Reis complementa: “Poder construir esse personagem foi um presente para mim. O Zé possui muitas camadas. Ele é um homem sensível, apaixonado pela esposa, pela família, parceiro. Mas, como todo ser humano, tem as suas questões, e a sensibilidade dele cai quando as barreiras sociais apertam, e aí vem o conflito do personagem”.

Há outro personagem masculino muito interessante que faz questionar o papel dos gêneros nessa sociedade, especialmente essa interiorana e de pouca abertura: o motorista que leva os romeiros até Juazeiro (vivido pelo ator Zé Maria). Ele apresenta certo sentimento de repulsa e atração por Paloma, muito conveniente a seus desejos, mas incapaz de assumir uma aceitação total da personagem.

Dessa forma, o filme embala a luta e o sonho de Paloma como uma busca interminável. “O filme constrói uma trajetória de autoafirmação. Essa Paloma ingênua, inocente, pouco a pouco vai construindo uma consciência. Ela tem uma fé religiosa, mas é importante também ter fé em si mesma. Paloma está dizendo: ‘Estou indo em busca da minha felicidade. Ela é fundamental para mim porque eu tenho esperança’. E segundo o educador Paulo Freire, ter esperança é um ato revolucionário”, arremata o diretor.

Paloma (Brasil/Portugal, 2022)
Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Marcelo Gomes, Armando Praça e Gustavo Campos

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 30/10/2022)

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