Beijos de sangue*
No seu longa anterior, a refilmagem do clássico Suspiria (a obra-prima de Dario Argento), o cineasta italiano Luca Guadagnino havia mergulhado de cabeça no horror (e saído com saldo negativo, vale dizer), com direito a muito sangue e alucinação. Seu novo filme, Até os Ossos, já em cartaz nos cinemas, caminha pelo gênero de outra forma, usando o terror como pano de fundo para uma história de amor e de amadurecimento.
É um trabalho que apresenta personagens com tendências vampirescas e canibais, já que descobrimos logo no início o desejo por sangue e carne humana que acomete a protagonista Maren (Taylor Russell). Ela vive apenas com o pai (participação de André Holland) que sabe do “desvio” comportamental da filha e faz de tudo para que isso não aflore em violência, ambos tentando levar uma vida normal.
Porém, como toda adolescente, os instintos da garota falam mais alto e ela logo cai em tentação, revelando sua natureza animal. Isso precipita sua fuga da cidade, mas dessa vez é abandonada pelo pai, que lhe deixa uma fita cassete com confidências sobre sua infância e sobre os primeiros sinais da fome animalesca. Deixa pistas também de onde pode estar sua mãe, que os abandonou quando ela era muito pequena.
Maren parte em busca de suas origens, também na tentativa de se encontrar no mundo. Nesse percurso tortuoso, ela descobre outros sujeitos iguais, lobos solitários que vivem como nômades à procura de saciar sua fome – eles se autodenominam “devoradores”, nunca se chamam de vampiros ou canibais.
Um deles, o veterano Sully (Mark Rylance), é quem lhe ensina os princípios básicos dessa vida sombria de quem tem de se camuflar perante a sociedade. É preciso saber, por exemplo, como identificar aqueles que já estão prestes a morrer para se tornarem alimento fácil e não levantarem muitas suspeitas. Ou mesmo saber farejar uns aos outros como forma de se encontrarem e se ajudarem mutuamente. É uma vida que se faz de espreita e de fuga constantes, deixando um rastro de morte por onde passam.
Laços de sangue
Na sua jornada, ela também se depara com Lee (Timothée Chalamet), um jovem com ares de rebeldia e independência, com quem cria uma forte conexão, inicialmente à revelia do garoto. Mas daí para a atração amorosa é um pulo, ainda que o romantismo juvenil se misture aos vários conflitos existenciais de cada um – ele também tinha uma família que teve de abandonar a fim de não por em risco a vida dos que ama.
Isso faz de Até os Ossos um filme de muitas camadas. Ao mesmo tempo road movie, conto de horror e filme de formação, a trama prefere se amparar nos traços desses subgêneros como forma de nuançar os conflitos pessoais do casal diante não apenas de sua natureza animalesca, mas também a partir da necessidade de autodescoberta de cada um.
Iremos conhecer os motivos da fuga de Lee de seu lar, ainda que a relação com a irmã seja um vínculo que ele ainda não conseguiu romper. Da mesma forma, a tentativa de Maren de encontrar a mãe é o que motiva a garota a sair de seu “esconderijo” (a casa onde o pai a deixou), na medida em que ela tenta entender e controlar melhor os seus próprios instintos. Os laços de família, portanto, permanecem como questões cruciais para eles, até mesmo enquanto alternativa possível de constituírem um lar juntos.
Para além desses conflitos familiares, Maren começa a se interrogar sobre seus próprios instintos. Ela questiona, por exemplo, a violência com que é preciso se lançar contra a vida de desconhecidos para se alimentar – são realmente brutais e sanguinolentas as cenas dos ataques que eles precisam fazer a fim de aplacar suas necessidades biológicas. Eles não apenas sugam o sangue através de uma mordidinha no pescoço, traço característico dos vampiros clássicos, mas canibalizam o corpo de suas vítimas, literalmente, até os ossos.
Ao mesmo tempo em que sente fome, ela não quer brutalizar ninguém, apesar dos imperativos do corpo falarem mais alto. Ainda assim, ela apresenta algum senso de moralidade ao colocar essa questão para os demais que já normalizaram a violência e sua natureza predatória sobre outros seres humanos.
Vida marginal
Até os Ossos é, portanto, um filme de horror, mas muito mais interessado no desenvolvimento emocional desses jovens, em especial de Maren, à medida que reflete sobre os desvalidos da sociedade, os marginalizados que, mesmo ao fazer uso da violência para sobreviver, são párias que precisam se esconder e se alimentar de modo clandestino.
Guadagnino constrói esse universo sobre “vampiros modernos” com muita cautela. Sem pressa, o filme vai nos apresentando as idiossincrasias dessas criaturas, bem como desenvolvendo essa atmosfera sombria de descoberta dos instintos vampirescos. O encontro de Maren com o personagem de Rylance é primoroso nesse sentido, em especial por conta da atuação compenetrada e intensa do ator – que terá outros ótimos momentos no terço final da trama.
Os conflitos pessoais que movem os personagens, apesar de sustentarem o filme na sua centralidade (mais do que explorar cenas de violência e morte como fetiche pelo gênero puro e simples), apesar de interessantes, nem sempre se sustentam até o fim, já que outros aparecem no meio do caminho. A partir de certo momento da trama quando uma dessas pontas se fecha, o filme acaba seguindo um rumo mais amplo e mais morno também.
É quando surge o tema preponderante de Até os Ossos. Maren e Lee querem se estabelecer na vida, deixar para trás uma existência nômade e buscar uma instabilidade emocional e pessoal como um par (uma família?). A tarefa é das mais difíceis tendo em vista a condição animal de ambos, além dos riscos ao redor que não deixarão de aparecer no caminho dos dois. É possível se livrar de um passado errante, mas o cheiro de sangue e de morte estará sempre impregnado neles.
Até os Ossos (Bones and All, EUA/Itália, 2022)
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: David Kajganich e Camille DeAngelis
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 06/12/2022)